A visão de uma farmacêutica no Sistema de Saúde de três países Europeus

Em sua coluna de estreia no portal, Claudete Oliveira, gestora da APEPI e sócia do Instituto Huomaren, nos conta como é a visão de outros países em relação ao uso medicinal da cannabis

Publicada em 14/09/2022

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Por Claudete Oliveira

O mercado de Cannabis é dominado fundamentalmente pela América do Norte e Europa, com legislações que vêm se aperfeiçoando nos diferentes nichos. Mas como se dá esse processo em termos de fornecimento do medicamento por meio dos diferentes Sistemas de Saúde? Existe cobertura por parte dos planos privados ou dos públicos? Esse é um debate que estamos em vias de discussão no Brasil, vemos projetos como o do município de Búzios no Rio de Janeiro que incluiu a Cannabis em sua relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME), e começou a fornecer de forma gratuita o óleo para um grupo de pacientes, abrindo uma janela para os mais de 5000 cidades do Brasil. Essa discussão é o que poderá garantir o acesso ao medicamento de forma não discriminatória.

Como farmacêutica tenho um especial interesse na compreensão do funcionamento do sistema fora do Brasil o que me leva, sempre que viajo, a mergulhar nesse universo. A minha última incursão turística me levou a entender um pouco mais os sistemas Holandês, Tcheco e Austríaco. Comecei a questionar o nosso sistema e a relação com a Cannabis e gerar perguntas: Qual ou quais caminhos devemos seguir em termos de fornecimento do medicamento, baseado no bem estar, na economia e no acesso? Mesmo não sendo modelos a serem seguidos eles podem nos guiar em nosso debate.

A Holanda: tudo começa por aí...

Desde 2003, a Holanda disponibiliza a Cannabis para uso medicinal para tratamentos que não responderam a outras medicações. As flores são fornecidas como monopólio por uma única empresa vinculada ao governo (preço por grama nas farmácias €5,50- Bedrocan).  Os medicamentos processados são dispensados pelas apotheek-farmácias de manipulação com toda segurança, e individualizados. Porém, são poucas as farmácias que manipulam e dispensam esse medicamento. Uma tendência que vem sendo observada é a redução no número das primeiras prescrições de Cannabis, o que pode se justificar, também, pelo alto número de cafeterias (realizam venda de Cannabis recreativa e não são regulamentadas), fornecendo uma variedade maior de flores que Bedrocan, e a pacientes com autocultivo. Uma outra informação interessante é que o sistema de regulamentação, baseado em uma única empresa, reduz o número de quimiotipos de Cannabis. Por exemplo, cinco contra mais de 50 na Alemanha. Limita-se o número de quimiotipos limita-se o número de pacientes a serem tratados segundo alguns críticos do sistema. Além disso, nenhum reembolso é oferecido aos pacientes devido à recomendação do National Health Care Institute, o que significa que a Cannabis continua inacessível para muitos. O que segundo eles os deixa à própria sorte, com compras em locais sem regulamentação e controle farmacêutico.

O Hash, Marihuana & Hemp Museum é um museu localizado em De Wallen, Amsterdã, Holanda. De acordo com o museu, mais de dois milhões de visitantes visitaram a exposição desde sua inauguração em 1985. (Imagem: arquivo pessoal)

A situação da Áustria 

Do ponto de vista do consumidor o CBD (flor, óleo e produtos aromáticos, que inclui comestíveis) não se enquadra na lei de narcóticos, como ressalva o teor de THC deve ser < 0,3%. A Cannabis medicinal pode ser encontrada facilmente pelo país. Qualquer médico pode prescrever produtos à base de Cannabis. Pode ser prescrito como medicamento comprado  nas formas farmacêuticas de gotas e cápsulas. A diferença é que não são aprovados na Áustria como medicamento oficial, devido a falta de estudos de eficácia e segurança da Cannabis. O que essa não aprovação reflete? Bem, o tratamento muitas das vezes não será reembolsado pelo seguro de saúde austríaco, digo muitas das vezes pois a única exceção de reembolso seria para o tratamento da epilepsia, nesse caso é considerado medicamento oficial (é aprovado em âmbito  europeu). 

O THC como substância pura, também conhecido como "Dronabinol", pode ser prescrito e reembolsado desde que seu uso seja aprovado pela seguradora, e o tratamento convencional não seja efetivo (contraindicado). O Sativex® (spray oromucosal CBD:THC) também é passivo de reembolso em casos de espasticidade moderada a grave devido à esclerose múltipla como terapia complementar para adultos que completaram a terapia com pelo menos duas outras preparações anti espásticas diferentes. Epidiolex (preparação de CBD) e Canemes (THC- sintético) também requerem aprovação prévia. Quando se considera os custos dos medicamentos citados acima comparados a utilização da flor de Cannabis, por exemplo, essa diferença de preço pode chegar a 50% , o que representa um custo maior para a seguradora de saúde. Portanto, o custo para o tratamento para os medicamentos não considerados oficiais para o paciente  a longo prazo é alto, daí a necessidade de reembolso (preço óleo CBG 1000 mg/10ml, €44).

Um fato interessante que chamou a minha atenção foi que a Cannabis na Áustria é utilizada na homeopatia, sendo a prescrição definida pelo médico homeopata (Glóbulos de cannabis sativa Remedia). A Cannabis tornou-se agora um elemento permanente nos hospitais da Áustria. Naa ala de cuidados paliativos do Hospital das Irmãs da Misericórdia em Linz. Um em cada dez pacientes é tratado com medicação à base da planta, principalmente para estimular o apetite. Porém, essas são sintéticas ou isoladas.

A realidade na República Tcheca

O panorama não é muito diferente da Áustria. Podemos encontrar diversos produtos de Cannabis medicinal na cidade de Praga, capital da República Tcheca, disponíveis nas diferentes formas farmacêuticas. Porém, quando se usa a palavra medicamento (THC) o panorama é outro com pontos positivos. Diferentemente da Áustria e Holanda, lá o sistema de saúde pública cobre até 90% do tratamento para os pacientes usuários, mediante prescrição eletrônica, acima de 18 anos e com comorbidades específicas.,  como dor crônica, náusea relacionada à HIV, espasticidade e Síndrome de Gille. O que facilita muito o acesso ao tratamento para alguns pacientes, muito embora  igualmente muitas outras patologias fiquem de fora deste benefício.

A Cannabis está disponível desde 2015. Para uso medicinal é regulada em quantidade por paciente, com máximo 180g de flor/mês para uso ambulatorial. Mas não é permitida a produção de nenhuma forma farmacêutica para uso oral a partir das flores de Cannabis (com alto teor de THC), que não seja  a via inalatória. O governo (SULK a ANVISA local) detém o monopólio da produção de Cannabis o que dificultou a entrada de outras empresas no mercado, gerando uma espécie de monopólio, o que vinha detendo a redução de preço e a maior disponibilidade do medicamento. 

Farmácia de medicamento à base de cannabis na República Tcheca. (imagem: arquivo pessoal)

No caso da importação para uso medicinal, é necessária uma autorização de importação do Ministério da Saúde, com um período máximo de três meses e uma licença individual, burocratizando e aumentando ainda mais os custos.

Atualmente um decreto, que entrou em vigor no início deste ano, alterou o teor de THC e CBD presente nas flores, podendo variar de 0,3% a 21% para THC e de 0,1% a 19% para CBD, e aumentou, também, as chances de outras entidades privadas obterem a autorização de cultivo por parte do governo, porém o resultado dessas mudanças ainda não se vê na prática.

Existe muito a avançar em termos de políticas públicas de saúde e igualitária, por outro lado não podemos deixar de observar e analisar esse modelo de fornecimento via sistema público de saúde.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Sobre a autora:

Claudete Oliveira é graduada em Farmácia industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em gestão e docência no ensino superior e em tecnologia em Cosméticos pela UNIARA (Universidade de Araraquara). Mestre em ciências por Farmanguinhos - FIOCRUZ, na área de produtos naturais, atualmente é doutoranda em Farmanguinhos - FIOCRUZ, com Cannabis medicinal. Coordenadora técnica de beneficiamento da APEPI - Associação de apoio a pacientes e pesquisa em Cannabis medicinal. Professa do curso de pós graduação em Cannabis medicinal na UNYLEYA. Professora de Graduação da Universidade Castelo Branco. Secretária executiva do Grupo de trabalho Técnica do Conselho Regional de farmácia do Rio de Janeiro.