Um país que conhece a cannabis na esfera criminal

No Brasil, os depoimentos de policiais militares são provas aceitas por parte do judiciário para condenar quem é pego com pequenas quantidades da planta

Publicada em 06/09/2022

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Por João R. Negromonte

A lei de drogas n°11.343/2006, apontada por alguns especialistas como culpada pelo encarceramento em massa por parte da população negra, pobre e periférica do Brasil, contribui com o aumento da discriminação e a desigualdade social. Além disso, privilegia uma pequena parte da sociedade, segundo estudos. 

O levantamento Infopen (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro) mostra que, antes da Lei, os presos condenados por tráfico de drogas representavam 14% de toda a população carcerária. Em 2019, a transgressão atingiu 54,9% desse total e, somente entre as mulheres, o índice aumentou 27,4% em relação aos anos anteriores. 

Trazendo em números absolutos, entre 2005 e 2019, a quantidade  de pessoas presas por tráfico de drogas subiu de 296.919 para 773.151, diferença de 476.232. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 317.488 são negros. 

Esse cenário destaca a importância de uma regulamentação mais abrangente sobre a cannabis e outros tipos de substâncias no Brasil. Pesquisa publicada na plataforma JusBrasil, destaca que o modus operandi dos policiais militares e de alguns tribunais do estado de São Paulo não mudou quase nada desde a criação da referida Lei, mesmo com avanço tecnológico disponível atualmente. Isto é, os depoimentos de policiais tanto para o início do inquérito como para a condenação do indivíduo, são peças-chaves no julgamento.

Para a advogada especialista em cannabis medicinal e direito constitucional, Bianca Uequed (147.169/SP-STJ): “o encarceramento do povo negro e pobre é mais uma forma de segregação racial, dando sequência ao violento racismo estrutural e ao infinito desejo de controle dessa população por meio  de uma lei desproporcional”. Ela reforça que ao reproduzir o medo e incitar técnicas de poder sobre os corpos à justificativa de discipliná-los, gera, na sociedade, a falsa sensação de segurança promovida pelo Estado. “Essa conduta marginaliza o povo negro e perpetua a discriminação,” completa.

O papel da mídia

Um estudo publicado na base de dados científicos, Scielo Brasil, denominado “Mídia e drogas: análise documental da mídia escrita brasileira sobre o tema entre 1999 e 2003”, mostra o importante papel da mídia. Por meio da curadoria de 481 artigos sobre drogas publicados em uma revista de grande circulação nacional o  destaque principal seria  dado para a cocaína (21%), seguido pela maconha (19%), álcool (12%) e cigarro (12%). De modo geral, as duas primeiras receberam destaque nos veículos de imprensa, enquanto o álcool e solventes tiveram pouco destaque em comparação aos dados epidemiológicos de uso.

“Percebe-se que existe uma incompatibilidade entre o enfoque da mídia e o consumo de drogas no Brasil, fato que pode influenciar as crenças das pessoas sobre determinadas substâncias e as políticas públicas sobre drogas no país,” revela a pesquisa.  

Por muito tempo, a mídia tratou a cannabis e outras substâncias de maneira criminal, ou seja, sempre mostrando a violência, a ilegalidade e o descaso das autoridades em relação à população mais vulnerável. Contudo, de 2015 para cá, quando o uso medicinal da planta começou a ser uma realidade no país, alguns conceitos mudaram. De acordo com pesquisa do PoderData 61% dos brasileiros acreditam que o Brasil deveria liberar o uso da maconha em tratamentos médicos. 

Claro que ainda há um longo caminho pela frente no que diz respeito à atual Lei de drogas, que prende e corrompe pessoas de baixa renda e marginalizadas. Entretanto, à medida que o conhecimento e a informação chegam a uma parte maior da sociedade, ações como pessoas sendo presas por portar menos de um grama de qualquer substância tendem a diminuir.

Enquanto isso…

Enquanto movimentos sociais contra a atual Lei de Drogas não atingem seu objetivo, outros países como Estados Unidos, Canadá, Uruguai e Israel, praticam políticas de regulamentação e descriminalização efetivas. Nos EUA, por exemplo, um projeto de lei que pretende perdoar crimes relacionados ao consumo de pequenas quantias de cannabis, foi aprovado na Câmara dos Deputados do país

No Brasil, em 2021, uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta o plantio para fins medicinais, todavia, não há previsão de votação em plenário. Um julgamento sobre a descriminalização do porte para uso pessoal está parado no STF desde 2015, também sem data para ser retomado. O que resta é lutar contra o preconceito e a desinformação para que, talvez um dia, o povo não veja a cannabis como algo pertencente somente à classe menos favorecida da sociedade, entendendo que o tráfico existe em todas as camadas sociais, independentemente de raça, poder financeiro, religião ou gênero.