Um mês sem Padre Ticão, o pastor que tinha o cheiro das suas ovelhas

Conheça um pouco da história do padre caipira nascido em Urupês, definido pelos amigos como humilde e tímido mas que se agigantava para defender os mais necessitados e as causas que achava justas, como o uso medicinal da cannabis

Publicada em 01/02/2021

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Charles Vilela

Hoje (1) completa um mês do falecimento do Padre Ticão. Antônio Luís Marchioni morreu repentinamente aos 68 anos, dois dias depois de ser internado numa UTI para tratar tratar arritmia cardíaca e edema pulmonar. Ele deixa uma lacuna sem precedentes no movimento nacional que debate o uso da cannabis para fins medicinais. “Não tenho dúvida que ele foi o maior ativista da Cannabis Medicinal do Brasil”, afirma o deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP), o qual o considerava um amigo. 

Teixeira é o presidente da Comissão Especial sobre Medicamentos Formulados com Cannabis da Câmara, instância responsável pela discussão do PL 399/2015. “Ele fará falta porque dava uma dimensão popular à demanda (do uso medicinal da cannabis). Isso demonstra a grandeza dele: tirou esse tema de um tamanho pequeno e o agigantou para o Brasil, ajudando na sua legitimação.”

Nascido em uma família tradicionalmente católica, desde muito jovem Marchioni sentia-se vocacionado ao sacerdócio, já se identificando com os movimentos que nasciam à época por melhores condições de vida, principalmente o dos trabalhadores rurais. Então, ingressou no Seminário em São Carlos (SP), onde cursou filosofia e teologia, vindo a concluir seus estudos em São Paulo. Em 8 de julho de 1978 tornou-se sacerdote. 

Perseguido onde nasceu pela defesa das causas sociais, Padre Ticão veio para São Paulo

Ele era natural de Urupês, um pequeno município localizado na região noroeste do Estado de São Paulo, próximo a São José do Rio Preto, com uma população de pouco mais de 42 mil habitantes. Foi lá que Padre Ticão iniciou a trabalhar logo que deixou o seminário. “Mas permaneceu pouco tempo”, lembra o amigo Waldir Aparecido Augusti. “Era a época que os movimentos sociais ganhavam força, reivindicando direitos aos trabalhadores. Como pároco, ele abriu as portas da igreja para as reuniões e organizações sociais, passou a ser chamado de comunista, foi perseguido e teve que vir para São Paulo.”

E seria na capital do Estado, lugar distante 420 quilômetros de onde nasceu e iniciou sua trajetória como padre, que Marchioni se tornaria uma das mais expressivas lideranças no movimento social dentro da Igreja Católica. Em seguida, em 1982, foi nomeado pároco da Paróquia São Francisco de Assis por Dom Angélico Sândalo Bernardino, à época bispo da Diocese da região. “Ele se deparou com fome, miséria, falta de moradia, de transporte e de segurança que a população da região sofria” lembra Augusti. “Imediatamente passou a realizar um trabalho de organização popular com as pessoas, criando Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), grupos de rua, abrindo as portas da igreja para alfabetização de adultos, organização, para formação em política  e passou a liderar todo esse movimento que quer uma igreja, que vai ao encontro do povo.” 

Pastoral da Moradia, uma das ações coordenadas pelo Padre Ticão, já entregou 40 mil moradias

Um dos primeiros grandes movimentos que ele começou em Ermelino Matarazzo, região da Zona Leste da capital paulista, foi a Pastoral da Moradia. À época existiam inúmeros terrenos grandes sem utilidade, pertencentes tanto a órgãos públicos como a famílias abastadas. “Esse movimento por moradia eclodia no Brasil, junto aos movimentos pela redemocratização, direitos humanos, e por melhores condições de vida”, lembra. “Era o crescimento do movimento de redemocratização do país.”

Paralelamente, aconteciam as greves na região do ABC Paulista e pelo interior do estado, com trabalhadores da indústria da cana e dos trabalhadores rurais de um modo geral. A Pastoral da Moradia começou em 1984 pela Zona Leste, e em outras regiões periféricas de São Paulo. O Padre Ticão se tornou uma grande liderança, tendo sido inclusive preso por ocupações de áreas em reivindicações por moradia e pela instalação de uma rádio comunitária para facilitar a comunicação popular entre os moradores da região. Em 2020, esse movimento por moradia liderado por Marchioni bateu a marca de 40 mil casas construídas, boa parte delas através de mutirões. 

Avanços nas políticas públicas nos últimos 40 anos na Zona Leste têm as digitais do Padre Ticão

Padre Ticão atuava em várias frentes sociais na zona leste, tendo permanecido como pároco da comunidade durante 38 anos. “Em certo momento, ele começou a questionar que não bastava apenas moradia para as pessoas, se elas não tivessem condições para morarem com um pouco mais de dignidade, se nesse lugar não houvesse as políticas públicas necessárias para atender as necessidades da população”, afirma. Assim, foram surgindo os movimentos pela saúde, educação, transporte, pelos direitos humanos, atendimento a pessoas com deficiência, idosos, entre outros públicos excluídos socialmente ou marginalizados. Atualmente, são 25 pastorais em funcionamento na paróquia São Francisco de Assis. 

Na região, Padre Ticão encampou diversas lutas, entre elas a criação de universidades públicas e do Instituto Federal de Educação. “(A luta dele) nunca foi muito ortodoxa, de ficar esperando a burocracia, a benevolência dos outros. (Ele tinha a característica ) de ir tocando, fazendo manifestação”, lembra Gabrielle Dainezi, jornalista e coordenadora do curso sobre Cannabis Medicinal que é oferecido pelo Movrecam (Movimento pela Regulamentação da Cannabis Medicinal), em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “É uma paróquia (São Francisco de Assis) que tem participação ativa das famílias. Gente que ele casou, batizou os filhos que, mais tarde, Padre Ticão realizou o casamento. (É um público que) não está ligado somente aos movimentos sociais, mas à parte religiosa. É uma paróquia muito atuante.” 

Tema do uso medicinal da cannabis ganhou força nas discussões sobre saúde preventiva

O tema da Cannabis Medicinal chegou meio que por acaso à trajetória do Padre Ticão, por meio de eventos da Escola da Cidadania, serviço social mantido sob a sua liderança. Nos últimos 5 anos, a escola incluiu nos debates os temas da saúde preventiva e saúde integral. “Ele achava que tinha chegado a hora de discutir esse tema (do uso medicinal da cannabis). Avaliava que o SUS (Sistema Único de Saúde), apesar de gastar bilhões de reais por ano, mas não atende adequadamente às necessidades das pessoas, que era necessário lutar por uma saúde mais preventiva e educativa”, diz Augusti. “Então, a escola resolveu assumir a (discussão da) cannabis (para uso medicinal). Não é justo que a truculência de um Estado impeça as pessoas de terem acesso a aquilo que lhes fará bem e lhes trará melhores condições de vida.”

Num desses encontros, em que havia apenas uma pauta informativa sobre a Cannabis Medicinal, Padre Ticão decidiu dedicar mais atenção ao assunto e transformá-lo em uma discussão permanente. “Essa interação com ele foi muito importante porque conseguimos introduzir o tema medicinal da cannabis (para uso medicinal), e a relação (do Padre Ticão) com o dr. (Elisaldo) Carlini”, afirma Teixeira. “Ele deu uma dimensão muito grande (ao tema da cannabis para uso medicinal), até então impensável. Foi um gigante: tirou (o assunto) de um nível muito inicial e o projetou num nível muito alto e para o Brasil.”

“Coragem, sempre”: as palavras de ordem do Padre Ticão

Para Augusti, é imensurável a falta que o Padre Ticão fará à comunidade da Zona Leste e a todas as causas sociais que ele defendia e trabalhava, entre elas a do uso medicinal da cannabis. “Nesse aspecto, tenho a ousadia de dizer que ele é insubstituível. Como líder pastoral, como liderança comunitária, que não se vendia, que não se dobrava diante de autoridades inescrupulosas”, diz. “Ouvi do padre Júlio Lancelotti, que a morte do Padre Ticão representou, infelizmente, a morte num modelo de igreja libertadora, acolhedora, um modelo de igreja que o Papa Francisco defende com veemência. Ele vai fazer muita falta porque tinha um amor incondicional pela Igreja.”

A sensação no grupo que trabalhava mais diretamente com Padre Ticão é que ficaram órfãos do seu grande líder. “Está todo mundo (se sentindo) meio que sem pai, meio órfão. Ele tinha um modo de organizar para que as pessoas e os movimentos tivessem autonomia, por isso as coisas seguem. Mas todo mundo se sente órfão de alguém que continue desbravando”, avalia Gabrielle. “(O trabalho) fica totalmente manco. É muito difícil substituir essa figura: um padre católico que fala de cannabis dentro da Igreja. Uma pessoa que tenha coragem de dar a cara para bater e ir desbravando, desafiando as coisas. Isso dificilmente vamos ter como substituir: essa valia. O fato de ele falar isso (uso medicinal da cannabis), que é meio controverso, dentro de uma igreja, que não é muito progressista, com raras exceções, foi o que deu notoriedade (à causa).”

Quem era o Padre Ticão

"Aglutinava em si o sentimento das pessoas e se colocava à frente"

Foto: Arquivo pessoal

Waldir Aparecido Augusti, amigo e líder leigo na Paróquia São Francisco de Assis 

“Padre Ticão era um grande profeta. Nunca fez qualquer acepção a qualquer pessoa. Ele acreditava que a Igreja tinha que ser um grande centro de acolhimento, uma igreja ministerial, acolhedora e profética. E ele, como pessoa, representava exatamente isso. Todos, independentemente se ele conhecia ou não, se chegavam até ele tinham um momento para serem ouvidos, uma palavra de apoio, uma orientação. Cansei de ver o Padre Ticão receber presentes na época de aniversário e imediatamente distribuí-los para os mais carentes. Nunca se preocupou com posses: morou toda a vida na Casa Paroquial. Fosse onde fosse, ele era a mesma pessoa, dono de um coração que era maior que ele. Não se conformava como ser humano, como pessoa, em ver privilegiados sendo cada vez mais privilegiados, enquanto que os pobres eram cada vez mais condenados à miséria. Ele, como pessoa humana, aglutinava em si o sentimento das pessoas e se colocava à frente. Ele não fazia para as pessoas, ele fazia com as pessoas. Para ele, não bastava alguém chegar e dizer que tal pessoa estava passando por uma necessidade, passando por uma injustiça. Ele não ficava no telefone. Ele ia até lá. Envolvia-se na solução.”

"Ele enfrentava tudo, não tinha constrangimento"

Foto: Arquivo pessoal

Paulo Teixeira, deputado Federal 

“Ele me ensinou a romper barreiras. Talvez a situação mais difícil de tratar (na defesa do uso medicinal da cannabis) fosse a dele: dentro de uma instituição como a Igreja Católica e dentro de uma comunidade de periferia. Mas isso não lhe causava nenhum constrangimento. Ele enfrentou toda a sua barreira, colocando a Igreja Católica e toda sua estrutura a favor desta causa. Era um grande amigo. Ao longo desses 40 anos estivemos nas mesmas trincheiras: na luta pela saúde na Zona Leste de São Paulo, na luta pela USP, pelo hospital do Itaim, pela Escola Técnica Estadual, pela escola Técnica Federal em São Miguel, e pela universidade na zona leste.”

"Ele sempre estava na frente, de peito aberto, desbravando caminhos"

Foto: Arquivo pessoal

Gabrielle Dainezi, jornalista e coordenadora do curso sobre Cannabis Medicinal (Movrecam/Unifesp) 

“O Padre Ticão era uma pessoa que pautava as coisas. Ele estava sempre à frente. Ele decidia e tínhamos que ir correndo para conseguir alcançar  E muitas pessoas não entendiam o jeito dele tocar as coisas porque, às vezes, ele era polêmico. Ao mesmo tempo, era muito generoso e acolhedor. (As pessoas) procuravam ele nas maiores e menores demandas: da árvore que havia caído em cima da casa e o morador não conseguia remover, ao pedido de ‘padre, não tenho o que comer’. Ele sempre estava na frente, de peito aberto, desbravando caminhos. Ele me ensinou a não ter medo de lutar. Sempre fui uma pessoa da militância de maneira geral, mas eu tinha muito medo de me expor, de falar o que exatamente eu pensava, de tomar determinadas atitudes. Ele ensinou muito a mim e para muita gente. Ele plantou essa sementinha que a gente não deve ter medo de lutar pelo que é justo, pelo que é certo. Dom Angélico (Sândalo Bernardino) falava que ele era o trator de Deus. Ele tinha essa coisa de ir na frente, desbravando. A maioria das lutas que ele tinha na paróquia e até na Zona Leste tinha o dedo dele.”