Rafael Evangelista: associações estão sendo jogadas para escanteio de forma estratégica

Publicada em 16/08/2019

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Entramos na última semana para as consultas públicas da Anvisa sobre a cannabis medicinal no Brasil. Por isso, o portal Sechat pediu para personalidades envolvidas no setor escreverem artigos sobre suas contribuições ao debate. Os textos serão publicados até a próxima segunda-feira, fim do prazo das consultas.

A regulação da Cannabis precisa ocorrer sob uma perspectiva de inclusão social, através do fortalecimento da agricultura familiar e da economia solidária. Toda essa discussão só teve início por causa da sociedade, que organizada em diversas frentes, lutou e até hoje luta por seus direitos.

Ao longo desses anos, mudanças ocorreram dentro da Anvisa, criando critérios para a importação do Canabidiol (CBD) e Tetrahidrocanabinol (THC).

Fica a pergunta para reflexão: Seria isso um avanço? De certa forma sim, pois através disso, algumas famílias puderam ser ajudadas. Mas convenhamos que a realidade é clara: a maioria dos pacientes utiliza óleo feito de forma artesanal da planta in natura, com ótimos resultados. Apenas uma pequena parcela da população tem poder aquisitivo para importação, e, como foi dito pelo Prof. Dr. Sidarta em uma de suas palestras: "A maconha já é legalizada. Para os ricos."

As portas para a grande indústria estão abertas, e elas não consideram o papel essencial das associações de pacientes. Estamos sendo jogados para escanteio de forma estratégica.

A CP 655 que fala sobre os requisitos técnicos para o cultivo da Cananbis não restringe a participação de associações de forma direta (como foi colocado em muitas notícias), mas sim de forma indireta. Nossa participação sempre esteve restrita a partir do momento que nos obrigam a cumprir os mesmos requisitos técnicos e administrativos das grandes empresas.

Pedir para uma associação obter: Autorização de Funcionamento de Empresas (AFE), Autorização Especial (AE), seguir Boas Práticas de Fabricação de Insumos Farmacêuticos (RDC 69-2014), Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos (RDC 17-2010) em normativas para registro de medicamentos é covardia.

Concordo que deveríamos seguir todas essas normas acima caso o nosso intuito fosse fabricar medicamento ou vendar IFA’s para o mercado. Todavia, nossa intenção não é fabricar medicamento para vender na drogaria, e sim cultivar Cannabis para uso exclusivo dos pacientes associados, conforme orientação médica.

Entendemos que há uma necessidade de segurança e de controle para que não haja desvio de finalidade, mas isso deve ser de competência e responsabilidade da associação, e a fiscalização da Polícia Federal.

Entendemos também que há uma necessidade de controle de qualidade, e isso pode ser garantido por uma associação em parceria com Universidades, que poderiam realizar análises químicas e auxiliar no desenvolvimento de pesquisa científica. A indústria farmacêutica está desenvolvendo medicamentos isolados e sintéticos, inclusive o ministro da Cidadania, Osmar Terra, se encontrou com o Presidente da Prati Donaduzzi.

Essas pessoas visam lucro e desprezam o efeito entourage (sinergia entre os canabinoides). Precisamos entender que a atividade farmacológica da cannabis é resultante de uma ação sinérgica entre o fitocomplexo ali presente, e não a consequência de uma atividade biológica de um constituinte isolado ou sintético. O tratamento com a cannabis é personalizado e individual e deve ser levado para o lado da fitoterapia, podendo ser utilizada como planta medicinal fitoterápica na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde.

Importante dizer que a OMS tem destacado a necessidade de valorizar a utilização de Plantas Medicinais desde a declaração de Alma-Ata de 1978. A Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos constitui parte fundamental das Políticas Públicas do Brasil e foi elaborada visando o uso sustentável da Biodiversidade Brasileira com o fortalecimento da agricultura familiar e da economia solidária.

É necessário acelerarmos esse processo de transição e enfrentarmos os reais problemas, caso contrário ficaremos em uma situação que apenas grandes empresas serão beneficiadas (oligopólio canábico).

As associações são essenciais no processo regulatório, que deve ocorrer sob uma perspectiva de inclusão social, conforme já dito. O cultivo associativo não visa lucro e é exclusivo para os associados. Portanto, por sermos empreendimentos econômicos solidários, reiteramos a necessidade de um tratamento diferenciado e simplificado quanto aos requisitos de
regulamentação.

Uma associação poderia se adequar nos Princípios e diretrizes para BPA (MAPA) na produção de Plantas Medicinais.

O cultivo, o manejo, a colheita e o beneficiamento primário (que inclui limpeza, secagem e extração de óleos essenciais, quando for o caso), são as etapas que associações precisam. Quanto mais exclusiva a regulamentação for, pior ela será.

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