Psicodelia terapêutica

Os efeitos terapêuticos dos psicodélicos já são conhecidos, mas, como estão as legislações e as pesquisas em torno dessa terapia nos Estados Unidos, Canadá e Brasil? É o que conta a colunista Maria Ribeiro da Luz neste artigo.

Publicada em 13/01/2022

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Por Maria Ribeiro da Luz

Diversas pesquisas com psicodélicos, incluindo a psilocibina, MDMA, cetamina, ibogaína e ayahuasca, mostram que além de viagens alucinantes, essas substâncias proporcionam diversos benefícios terapêuticos, particularmente para condições de saúde mental, como depressão, transtorno do estresse pós-traumático, dependência química e ansiedade. 

(Créditos da imagem: Instagram Doubleblindmag)

Graças à análise de imagens do cérebro sob efeito dos psicodélicos, David Nutt e Robin Carhart- Harris constataram que os psicodélicos atuam principalmente relaxando a atividade hiperativa da rede de modo padrão, ou DMN (default mode network). A DMN é um conjunto de conexões entre determinadas áreas do cérebro, responsáveis pelos pensamentos sobre passado, futuro e também pelas emoções autorreferentes. Em outras palavras, o nosso complexo ego. 

A DMN de um indivíduo em depressão se encontra muito atribulada, responsável pela recorrência de pensamentos negativos. O efeito terapêutico dos psicodélicos se deve à diminuição da atividade nessas áreas, proporcionando a ocorrência de novos fluxos de pensamento, numa expansão de repertórios do estado mental, com melhoras significativas no humor e bem estar.

Esta imagem é de um estudo de 2014 no Journal of the Royal Society Interface. A imagem à esquerda (a) é de um cérebro humano sob consumo de um placebo, e a imagem à direita (b) é de um cérebro sob consumo de psilocibina.

Ainda nos anos 50 e 60, pesquisadores já estudavam as propriedades terapêuticas da psilocibina, e fizeram progressos substanciais, publicando suas observações em importantes revistas científicas na época. Desde os anos 70, quando o congresso americano aprovou a lei de substâncias controladas, e o então presidente Nixon lançou a infeliz guerra às drogas, a psilocibina foi banida. Até recentemente, a Drug Enforcement Administration impossibilitava até mesmo o desenvolvimento de pesquisas científicas. 

Um estudo publicado na revista JAMA Psychiatry em 2020 revelou que a psicoterapia assistida por psilocibina foi um tratamento rápido e eficaz para um grupo de 24 participantes com transtorno depressivo grave. Outra pesquisa publicada em 2016 indicou que o tratamento com psilocibina produziu diminuições substanciais e sustentadas na depressão e na ansiedade em pacientes com câncer severo. 

A revolução psicodélica é mundial

Nos últimos anos, encorajados pela crise de opióides, ineficazes contra os inúmeros transtornos mentais da atualidade, estamos presenciando o renascimento psicodélico, tanto na esfera científica como legal. O que começou com alguns tímidos estudos de pesquisa no início dos anos 90, cresceu para incluir empresas de capital aberto, infusão de milhões em capital de risco e múltiplos ensaios clínicos sancionados pela Food and Drug Administration (FDA). Como a psilocibina tem o potencial de tratar a depressão de forma mais eficaz do que as terapias disponíveis atualmente, a FDA a denomina (com certo atraso), de “breakthrough therapies” ou terapia revolucionária.

(Créditos da imagem: Instagram Doseosmosis via Mycoadmiration)

Estados Unidos

Na terça-feira, 04/01/2022, os legisladores do Estado de Washington apresentaram um projeto de lei (SB 5660) que legalizaria o uso adulto assistido por psilocibina para pessoas com idade acima de 21 anos de idade. O projeto conhecido como Washington Psilocybin Wellness and Opportunity Act apresenta muitas características inovadoras, incluindo um Programa de Oportunidade Social, para ajudar nos danos causados pela guerra às drogas, com provisão para apoiar pequenas empresas e disponibilização de acomodações para que pessoas com determinadas condições médicas, recebam a substância psicodélica em casa.

A aprovação da lei permitirá ao Departamento de Saúde de Washington emitir licenças para instalações de fabricação de psilocibina, laboratórios de testes, centros de serviços e treinamento de facilitadores. Também criará o Washington Psilocybin Advisory Board para assessorar o departamento na criação de regras para a implementação da Lei.  

Neste modelo de regulamentação, profissionais treinados e licenciados denominados facilitadores, administram a psilocibina sob condições de apoio em centros de serviço licenciados.

Ao lado da pesquisa médica e da comercialização da psilocibina, formaram-se movimentos de reforma. Não dispostos a ficar de braços cruzados, enquanto as taxas de suicídio e doenças mentais aumentam em suas comunidades, ativistas de todo o país estão endossando a legislação inovadora. 

Denver foi a primeira cidade americana a descriminalizar um psicodélico em 2019 quando os eleitores aprovaram a Iniciativa 301. Desde então, pelo menos uma dúzia de outras cidades seguiram o exemplo. Muitas jurisdições, como a de Seattle, que se tornou a maior cidade a descriminalizar em outubro, adicionaram outras substâncias psicodélicas naturais à lista de substâncias descriminalizadas. Durante as eleições presidenciais de 2020, os eleitores do Oregon aprovaram a Medida 109, criando uma indústria legal de psilocibina no estado. A governadora Kate Brown reuniu o Conselho Consultivo de Psilocibina do Oregon, que inclui cinco subcomitês focados em pesquisa de psilocibina, equidade na saúde, produtos, licenciamento e treinamento de facilitadores.

(Créditos da imagem: Instagram Doubleblindmag)

Canadá

Enquanto isso, no Canadá, o departamento de saúde do país - Health Canada - comunicou em 05/01/2022 que os regulamentos sobre drogas estão sendo alterados com base em novas pesquisas fundamentadas nos benefícios terapêuticos das substâncias psicodélicas.

Sob a emenda dos regulamentos federais sobre alimentos e drogas, os médicos poderão a partir de então, solicitar o acesso à drogas anteriormente restritas, incluindo substâncias psicodélicas, em nome de seus pacientes, através do Programa de Acesso Especial do Ministério da Saúde do Canadá.

O Programa permite que os profissionais de saúde solicitem permissão para usar tratamentos não aprovados para pacientes com condições médicas sérias ou com risco de vida. O programa se aplica somente nos casos em que as terapias convencionais falharam, são inadequadas, ou não estão disponíveis no Canadá. Os pacientes não têm permissão para solicitar o acesso ao tratamento através do programa em seu próprio nome. 

Brasil

No Brasil, apesar da ayahuasca ser regulamentada para uso em contexto religioso, as outras substâncias psicodélicas ainda não gozam do mesmo status. O nosso país conta orgulhosamente com um time científico de peso no que diz respeito às pesquisas com substâncias psicodélicas. 

Depois de muito trabalho, persistência e dedicação, o neurocientista fundador e diretor do instituto Phaneros, Eduardo Schenberg, PhD, desenvolveu uma formação para profissionais da área da saúde, voltada para pesquisa com psicoterapia assistida por psicodélicos.

Em parceria com a MAPS, obteve autorização para importar e estocar MDMA no Brasil, para as sessões de tratamento, desempenhadas em todo o país, e realizados no âmbito do estudo clínico por profissionais treinados, de acordo com os protocolos da MAPS.

O processo é complexo, e em resumo conta com diversas sessões de psicoterapia: 3 sessões preparatórias de 1h30, seguidas de 3 sessões espaçadas, onde o MDMA é administrado, com duração média de 8h, em que o paciente está acompanhado por dois profissionais facilitadores, num -setting - ambiente convidativo para uma experiência agradável. Com luz amena e música selecionada nos fones de ouvido, o paciente se acomoda confortavelmente e pode optar por permanecer de olhos vendados durante sua jornada, contando com o apoio e escuta empática dos profissionais, caso sinta necessidade. As sessões integrativas ocorrem em uma outra ocasião, em que o facilitador traz questões abordadas pelo paciente na ocasião da administração da substância, procurando integrar as experiências vividas durante o processo.

Quando se trata do uso de psicodélicos, é essencial nos atentarmos à importante questão da apropriação cultural. Apesar dos resultados promissores provenientes das décadas de pesquisas realizadas com essas substâncias, é obrigatório abordarmos a questão epistemológica, tendo em vista que muito antes de serem objeto de estudos científicos, o uso dos psicodélicos foi ancestralmente praticado em incontáveis comunidades tradicionais espalhadas pelo mundo. O patrimônio biocultural e as práticas medicinais tradicionais provenientes dos povos indígenas precisam de regularização adequada, respeitando não somente os direitos desses povos, mas também regulamentando a exploração e as práticas extrativistas, insustentáveis a longo termo.

A renascença psicodélica veio dessa vez não só para ficar, mas para revolucionar as possibilidades terapêuticas na esfera dos transtornos mentais e emocionais. O proibicionismo e as legislações irracionais não são mais capazes de conter o potencial desses compostos para a psiquiatria, psicologia e sociedade em geral. No limite entre espiritualidade e ciência, essas substâncias permitem o acesso a outras formas de consciência, reconexão com a natureza e com o coletivo. A era da ansiedade e da depressão, intensificada pela superficialidade das redes sociais e coroada com o colapso da natureza e a pandemia, não poderia ser momento mais propício para a aceitação e reintegração dos compostos psicodélicos, como o alvorecer de um novo paradigma.   

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

Sobre a autora:

Maria Ribeiro da Luz é fundadora da Anandamidia, uma empresa especializada em mídias diversas para cannabis, que opera entre Brasil e Canadá. Maria está imersa no universo da cannabis no Canadá, e em suas colunas, aborda ciência, história e inovações do mercado norte americano, com o intuito de fortalecer a causa no Brasil.