Proibicionismo insano

Réu primário com bons antecedentes, Márcio está preso há quatro anos e, na saidinha da prisão, ele trabalha na Associação de Cannabis Medicinal – Maria Flor, com a mesma substância que lhe tirou a liberdade, a maconha

Publicada em 03/02/2023

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Colunista Margarete Brito: reportagem especial para o Sechat

Fernanda tem 44 anos, é formada em turismo, mãe de Pietra de 13 anos e Niklas de 23 anos. Ela tem um raciocínio matemático acima da média, fala três idiomas e contou que quando era criança ficava horas olhando para a parede fazendo contas e quando experimentou maconha pela primeira vez, sentiu algum conforto que não sabia explicar. Ela acha que a maconha parece ter organizado sua cabeça, talvez uma sensação de alívio ou coisa parecida, então nunca mais parou de fumar, alguém tem dúvida que isso é uso terapêutico?

Mas, o estigma trazido pela história da marginalização de usuárias e usuários de drogas é muito complexa para pessoas comuns saberem que, na grande maioria das vezes, o uso de substâncias lícitas ou ilícitas é a busca consciente ou inconsciente de algum conforto que a pessoa encontra na cannabis. 

Foi nessa busca por encontrar um baseado, no ano 2000, que Fernanda conheceu o Márcio, um garoto simples do outro canto da cidade. Foi tipo Eduardo e Mônica, que perto da história de Márcio e Fernanda, fica sem graça (guardem esse trecho da história).

Fernanda, moça bem criada do interior de SP, conheceu seu ex-marido e pai dos seus filhos, um empresário de São Paulo, se casaram e em 2002 foram morar nos EUA, junto com Niklas. 

Uma vida está lá fora

Moraram lá por sete anos, com 25 anos Fernanda já era gerente de um hotel e ganhava cinco mil dólares por mês. Apesar de uma vida estável, tinha saudades do Brasil. Todas as vezes que voltava de férias, encontrava o Márcio e, como sempre, a maconha os unia.

Marcio e Fernanda.

Depois de alguns anos, tentando se separar do marido e infeliz morando nos EUA, Fernanda começou planejar sua volta para o Brasil. Em seus planos profissionais, havia o desejo de realizar projetos socioambientais com crianças e, nos planos amorosos, viver com Márcio, que mesmo de longe, nunca o esquecia.

Em 2009, Fernanda conta que voltou para o Brasil e, dessa vez, decidida a viver com Márcio. Porém, na  mesma semana ela descobriu que estava grávida do ex-marido. Fernanda ficou com medo de dizer para o Márcio sobre a gravidez e ele não aceitar, mas entenderam que a Pietra viria para somar e tudo seria como tinha que ser.

Então conseguiu financiamento para seu projeto “Escolinha da Mata” que funcionou por anos na fazenda dos seus pais, em Marília, junto com Márcio, seus dois filhos, cachorros, cavalos. Batalharam grana, seguraram legal a barra mais pesada que tiveram, tocando juntos a escolinha da mata, até que em 2018 surgiu a oportunidade de se envolverem com o plantio de maconha para ajudar outras pessoas.

Associação Maria Flor

Assim como outras Associações, a Maria Flor nasce de uma necessidade/oportunidade de ajudar pessoas. Hoje, a entidade funciona no lugar onde era a escolinha da mata, atende cerca de três mil famílias, é dirigida pela Fernanda e mais três mulheres: Cláudia, Carol e Silvia.

Mas nem tudo são flores!

No meio dessa história Márcio foi preso e dessa vez a maconha separou o casal.

Marcio e os filhos do primeiro casamento de Fernanda, Pietra, 13, e Niklas, 23 anos.

Márcio (réu primário, com bons antecedentes) vive preso há quatro, condenado por tráfico de maconha, em Rondônia, Porto Velho, por conta de um flagrante. Fernanda e Márcio todos os anos viajavam de carro de Marília para Rondônia para encontrar amigos. E, sem hipocrisia, todo mundo que fuma carrega consigo, sob riscos, alguma quantidade de erva para uso próprio. Só que dessa vez, eles também levaram alguns frascos de óleo para doarem para amigos  do Acre, mas foram presos em flagrante no caminho. Sabe qual a quantidade? 6 frascos de óleo (que foram pesados juntamente com os frascos perfazendo 790 gramas de maconha líquida + cerca de 100 gramas de maconha em erva).

Fernanda ficou presa 1 semana e responde ao processo em liberdade. Hoje, ela conta rindo histórias que aconteceram nesses dias dentro da prisão, como por exemplo, a resposta que deu a uma líder dentro do presídio feminino que lhe perguntou como queria ver o marido dela ao sair da prisão. Ela, já muito irritada, disse: “Vivo e pelado”. Nesse dia, ela ganhou respeito das presas e as coisas facilitaram um pouquinho pra ela. 

A vida real sem cortes

Marcio dando aula na escolinha da mata.

Fernanda conta que na penitenciária de Rondônia, uma das mais violentas do Brasil, Marcio pegou malária, Covid e chegou a beber água do vaso sanitário. Há um ano, conseguiram a transferência do Márcio para a penitenciária de Marília, que por ironia do destino, faz fronteira com a Fazenda onde fica a Associação de Cannabis Medicinal Maria Flor. Mas, e na “saidinha”, Marcio vai para onde? Sim, para a Fazenda que trabalha e fornece o mesmo produto que lhe tirou a liberdade há quatro anos.

Parece piada, mas é real. Eu passei em frente à entrada da penitenciária onde Marcio permanece preso, ilegalmente, e a distância é menor que 500 metros.   Por ironia do destino Márcio foi condenado por tráfico de maconha e quando sair ajudará a Fernanda na plantação de maconha que produz “legalmente” (por decisão judicial), ajuda mais de três mil pacientes, que dá emprego para mais de 45 pessoas, tem projeto de saúde integrada e participa de políticas públicas municipais.

Para aumentar ainda mais a indignação de quem luta pela causa, atualmente o sistema penitenciário não tem condições de permitir que presos cumpram regimes semiabertos por falta de tornozeleiras eletrônicas. Portanto, Marcio está preso ilegalmente há 1 ano. 

Não dá mais para a sociedade aceitar e fingir que está tudo bem, porque não está. Passou da hora de colocar fim à punição de usuários e usuárias de cannabis. O Estado precisa privilegiar a dignidade humana pondo fim ao vergonhoso legado desse proibicionismo insano!

Sobre a autora

Margarete Brito é advogada com especialização em responsabilidade social e terceiro setor na UFRJ, fundadora e diretora executiva da APEPI – Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis, que conta com mais de 4.500 associados. Primeira brasileira a receber o Habeas Corpus para o cultivo individual para produção de remédio para sua filha, se tornando principal referência de ativismo canábico no Brasil. Em 2014, sua história foi relatada no premiado documentário “Ilegal – A vida não espera”. Protagonista de reportagens na imprensa nacional e internacional, é pioneira na defesa dos direitos dos pacientes de cannabis medicinal. É mãe de Sofia e Bia e junto com seu companheiro e também diretor e fundador da APEPI, Marcos Lins, receberam a segunda autorização judicial para o cultivo pela Associação.