“Precisamos entrar no século 21”, diz Bacellar, da Verdemed, sobre a regulação da Cannabis medicinal no Brasil

Em entrevista ao Sechat, o empresário analisa a atual regulação do setor de Cannabis medicinal no país, elogia o PL 399/2015, que está tramitando no Congresso, e critica a radicalização da discussão em torno do tema

Publicada em 10/11/2020

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Charles Vilela

O empresário José Bacellar tem muitos planos para o mercado brasileiro de Cannabis medicinal. Com passagem pela Canopy Growth, uma das maiores empresas de Cannabis do mundo, pela Bombril e pela Vetnil Medicamentos Veterinários, agora ele comanda, diretamente de Toronto, no Canadá, a Verdemed, empresa farmacêutica que liderou a fundação em 2018.

Com mais de 30 anos de experiência neste segmento industrial, sua atuação também sempre esteve próxima à tecnologia. Com formação em Administração de empresas pela USP, ele possui mestrado na área pela mesma instituição e fala com orgulho de, logo no início da carreira, ter participado do desenvolvimento no Brasil dos primeiros medicamentos genéricos para tratar o vírus do HIV, causador da Aids. 

Bacellar tem pela frente mais um grande desafio: inserir a Verdemed no mercado de genéricos de Cannabis medicinal da América Latina e, principalmente, no mercado brasileiro. Nesta entrevista exclusiva concedida ao portal Sechat, o empresário analisa a atual regulação do setor de Cannabis medicinal no Brasil, elogia o PL 399/2015, que está tramitando no Congresso, e critica a radicalização da discussão do tema. “O Brasil está no século XX. A lei e a regulamentação brasileira são do século passado, e o país precisa entrar no século XXI”, diz ele. 

SECHAT - Qual a sua avaliação sobre a legislação brasileira na questão da Cannabis medicinal?

JOSÉ BACELLAR - Acho que o Brasil está no século XX. A lei e a regulamentação brasileira são do século passado, e o país precisa entrar no século XXI. O Projeto de Lei 399/2015 já traz o Brasil para o século XXI, porque vai permitir o plantio do cânhamo industrial e está previsto no projeto o uso dos derivados do cânhamo, que nada mais é que a cannabis com baixo teor de THC, permitindo seu uso em alimentos, remédios, shampoos e em bebidas. Isso vai criar um mercado de CBD igual ao que estamos vendo nos Estados Unidos. Cria, também, a produção de matéria-prima controlada.

Isso vai criar um mercado de CBD igual ao que estamos vendo nos Estados Unidos. Cria, também, a produção de matéria-prima controlada. Hoje, se quisermos produzir o produto com CBD, temos que importar a matéria-prima, mas se tivermos acesso a ela aqui, é melhor. 

Hoje, se quisermos produzir o produto com CBD, temos que importar a matéria-prima, mas se tivermos acesso a ela aqui, é melhor. O projeto 399/2015 que está em discussão, com a comissão presidida pelo (deputado) Paulo Teixeira e com relatório do (deputado) Luciano Ducci, é um avanço significativo em termos de legislação e permite que empresas tenham acesso ao CBD. O projeto até autoriza o (cultivo) associativo e não engloba o plantio individual, por uma limitação política. 

SECHAT - Então o senhor avalia o projeto como algo positivo? 

JOSÉ BACELLAR - O projeto está equilibrado. Creio que todos deveriam apoiar, e depois discutimos outros mecanismos de acesso aos pacientes. Além disso, não acho que seja competência da Anvisa regulamentar o plantio de cannabis no Brasil. Então, onde está o problema? O problema é que, em 2006, por legislação, a Cannabis medicinal deveria ter sido regulamentada, mas, 14 anos depois, não se faz nada. Por isso, o Poder Judiciário acaba legislando. Mas não é sua função legislar, e, sim, arbitrar. Então, qual é a situação? O Poder Judiciário se vê em uma situação que “se o poder Executivo não regulamenta, temos que regulamentar.” Minha expectativa é que esse projeto de lei venha para preencher uma brecha importante que está faltando na lei. 

SECHAT - Por que o senhor acredita que o Executivo e o Legislativo estão se omitindo em relação à regulamentação da Cannabis medicinal? 

JOSÉ BACELLAR - Porque estamos tratando de cannabis, também conhecida como maconha. Não podemos negar que o uso da cannabis “pode dar barato.” Seríamos hipócritas se falássemos que a molecada não utiliza isso para se divertir. Acho que aí tem um problema de discussão. Existe uma ala que é contra e uma que é a favor. Eu estou no meio. Acho que o país tinha que regulamentar a Cannabis medicinal. Se as pessoas estudarem o projeto e lerem o que está escrito lá, elas saberiam que está escrito que “a cannabis com alto teor de THC será plantada para estudo, com segurança, cerca elétrica, mediante a autorização especial dos ministérios da Justiça e da Agricultura”, do mesmo modo que ocorre em relação à legislação da Colômbia.

Existe uma ala que é contra e uma que é a favor. Eu estou no meio. Acho que o país tinha que regulamentar a Cannabis medicinal. Se as pessoas estudarem o projeto e lerem o que está escrito lá, elas saberiam que está escrito que “a cannabis com alto teor de THC será plantada para estudo, com segurança, cerca elétrica, mediante a autorização especial dos ministérios da Justiça.

Então, o que está sendo liberado no projeto é o cânhamo industrial, que acredito que não passe no parlamento por uma questão ideológica e de politização. Se você é um deputado, um senador ou ministro, que tem um público que diz que a maconha é “a droga do demônio”, você vai querer agradar seu eleitorado. Creio que falte um pouco de maturidade no debate. Os estados norte-americanos souberam separar essa questão ideológica. É preciso acabar com a polarização. Aqui acham que ou você é “maconheiro”, ou é uma pessoa que está preocupada com a saúde dos outros e quer ganhar dinheiro. Não há um meio termo? O que está acontecendo é que os governos estão sendo processados e os juízes do Poder Judiciário estão mandando os governos comprarem esses medicamentos que estão custando os preços mais elevados possíveis. Quem está perdendo com isso? São os pacientes, porque eles acabam não tendo acesso. É a saúde, porque as pessoas não têm o devido tratamento, mas também o próprio governo, que é obrigado a pagar preços elevados por matérias-primas que poderiam ser nossas.

SECHAT - Há um movimento de senadores e deputados que querem inserir o CBD no SUS, com distribuição gratuita. Para o senhor, isso seria viável?

JOSÉ BACELLAR - Creio que isso seja uma artimanha política, porque as pessoas não sabem como funciona o SUS e a Relação Nacional de Medicamentos (Rename). Você não cria uma lei no Congresso Nacional obrigando o poder federal a comprar um remédio. Não funciona assim. Existe a Rename, onde o Ministro da Saúde decide o que vai comprar e o que será distribuído. Se você vai na UBS (Unidade Básica de Saúde), tem a distribuição de preservativo, e quem compra é o Governo Federal. São programas de Estado, e o governo brasileiro precisa olhar e analisar o que é melhor para a população.

Essa história do SUS comprar o CBD é uma cortina de fumaça, porque não é assim que o SUS e o Ministério da Saúde decidem. Se assim fosse, todos os remédios do mundo seriam comprados pelo governo.

Por exemplo, o produto que estamos fazendo é para o sono, para ansiedade. Não posso ter expectativa que o governo vai comprar esse remédio, tanto que meu plano é vender em um  preço que vai competir com os medicamentos para o sono que estão sendo vendidos nas farmácias, porque sei que o governo não vai comprá-lo, já que ele já compra somente os medicamentos convencionais. Por isso, essa discussão é para desviar a atenção. Essa história do SUS comprar o CBD é uma cortina de fumaça, porque não é assim que o SUS e o Ministério da Saúde decidem. Se assim fosse, todos os remédios do mundo seriam comprados pelo governo.

SECHAT - Considerando a possibilidade de que o CBD seja incluído para distribuição pelo SUS, não seria incoerente esses políticos apoiarem a incorporação de um medicamento à base de cannabis e, ao mesmo tempo, serem contra o plantio da matéria-prima?

JOSÉ BACELLAR - Seria mais que uma incoerência, seria uma inconsistência, pois você vai obrigar o Estado a pagar preços elevados por um produto que poderia ser fabricado aqui pela agroindústria do Brasil, por isso trata-se de uma discussão irreal. Precisamos separar a discussão, “tirar as crianças da sala”. Com as pessoas que consideram “a erva do demônio" e o grupo do “legalize” não dá para conversar, porque eles têm uma visão muito ideológica. Este ano os governos estaduais, municipais e federais vão gastar 20 milhões de reais com liminares que os pacientes e promotores de justiça ganharam contra as diversas esferas estaduais.

Com as pessoas que consideram “a erva do demônio" e o grupo do “legalize” não dá para conversar, porque eles têm uma visão muito ideológica. Este ano os governos estaduais, municipais e federais vão gastar 20 milhões de reais com liminares que os pacientes e promotores de justiça ganharam contra as diversas esferas estaduais.

A questão não é se os governos vão realizar as compras ou não, porque isso eles já estão fazendo, mas podíamos estar comprando por preços muito mais baratos se o plantio ocorresse aqui. Teríamos uma redução do valor dos medicamentos de, no mínimo, 50%.

SECHAT - O senhor não acha que as empresas e startups que estão nesse setor deveriam ter um movimento mais organizado e profissional em relação ao Congresso no sentido de pautarem essa discussão com mais força?

JOSÉ BACELLAR - Pode ser que sim, mas não temos nada favorável no Executivo e no Legislativo. A pauta é a reforma tributária do Estado. São outras prioridades. Também temos que ter noção do nosso tamanho. A pergunta que vale é: por que as empresas estrangeiras que vieram para o Brasil recentemente foram todas embora? Porque o ambiente regulatório não é favorável. A Verdemed é uma empresa farmacêutica, então seguimos as regras da lei que vale para a indústria farmacêutica. Se você está chegando e quer vender um produto CBD é dificílimo porque não tem lei. O (substitutivo ao) PL 399/2015 existe pra isso. É um projeto muito bom e muito progressista.

 A pergunta que vale é: por que as empresas estrangeiras que vieram para o Brasil recentemente foram todas embora? Porque o ambiente regulatório não é favorável. 

SECHAT - O senhor acredita que a tramitação do projeto não está avançando na Câmara por essa falta de informação somada à questão ideológica ou por que o país tem outras prioridades?

JOSÉ BACELLAR - É uma questão conjuntural, não estrutural. Quando o Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados) criou a condição especial, em 2019, o objetivo era que se fizesse o projeto e que ele estivesse pronto no primeiro trimestre de 2020 para ser votado ainda no início deste ano. Só que apareceu a Covid-19, então o projeto atrasou e entraram outras pautas prioritárias. A indústria da cannabis tem que entender que os deputados têm as suas prioridades. Creio que tivemos uma conjuntura adversa. O objetivo da Câmara dos Deputados era fazer a regulamentação, só que foi tudo “atropelado” pela Covid-19 e a reforma tributária, que é considerada mais essencial no momento, voltou como pauta.

A indústria da cannabis tem que entender que os deputados têm as suas prioridades. Creio que tivemos uma conjuntura adversa. O objetivo da Câmara dos Deputados era fazer a regulamentação, só que foi tudo “atropelado” pela Covid-19 e a reforma tributária, que é considerada mais essencial no momento, voltou como pauta. 

O país é democrático e o processo é complexo. O que é mais importante agora, é cuidar da Covid-19, dar emprego para quem está desempregado ou resolver a situação da cannabis? Não houve um debate sobre isso porque essa questão foi totalmente soterrada pela indisposição dos opositores de lerem o projeto, porque hoje não é discutido o que está escrito, mas sim as diferentes opiniões que estão sendo privilegiadas no lugar dos fatos.