Portaria 344 da Anvisa mistura alhos com bugalhos quando o assunto é cânhamo

A falta de informação ainda faz com que as propriedades do cânhamo sejam confundidas com as da cannabis, principalmente quando se fala nos efeitos psicoativos, os quais não acontecem quando falamos do cânhamo. Mas essa confusão pode atrasar ainda mai

Publicada em 03/06/2022

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Por Marcelo De Vita Grecco

As autoridades sanitárias brasileiras, lamentavelmente, ainda tratam o cânhamo (hemp, em inglês) como uma planta capaz de provocar efeitos psicoativos no ser humano. Isto, eu asseguro, é impossível! Esse entendimento errôneo contribui tão-somente para atrasar o desenvolvimento de um novo e importante mercado para o Brasil, além de aumentar ainda mais a desinformação e o preconceito em torno da planta.

Não me canso de repetir que sementes e fibras de cânhamo são incapazes de causar qualquer efeito psicotrópico a quem quer que seja. Porém, infelizmente, essa não é a mesma interpretação da Anvisa que, por meio da Portaria nº 344/98, proíbe a produção, importação, exportação, manipulação e o uso de cânhamo, em território nacional, para qualquer finalidade.

Apesar de todo o respeito que mantenho por esse importante órgão regulador, reservo-me o direito de discordar da Anvisa quanto a essa posição equivocada no tocante ao cânhamo. 

Alhos com bugalhos

A Anvisa mistura sementes e fibras de cânhamo com variedades da planta que produzem flores, das quais são extraídos canabinóides, entre os quais o tetrahidrocanabinol (THC), para a produção de medicamentos controlados para o auxílio terapêutico no tratamento de dezenas de doenças. Essa confusão contribui para atrasar o desenvolvimento de uma cadeia produtiva sustentável do cânhamo no país, o que todos nós almejamos. Como diziam os mais antigos: a Anvisa mistura alhos com bugalhos, tratando de forma igual aquilo que é diferente.

As variedades da planta das quais se extrai canabinoides para uso medicinal estarem na Portaria 344, até aí eu entendo. É imperativo manter o controle rígido e todos os cuidados especiais, como a Anvisa aplica a qualquer medicamento. O que é excesso de rigidez, na minha visão, é estender esse mesmo rigor de controle também a sementes e fibras de cânhamo, destinadas à indústria. Sou contra misturar variedades específicas para produção de medicamentos de sementes e fibras de cânhamo. O órgão acaba jogando tudo no mesmo balaio. O que é e o que não é remédio.

Pelo que conheço das características da planta, semente e fibra de cânhamo não deveriam nem constar na Portaria 344. Em suma, não entendo o que uma proteína e uma fibra vegetal fazem nesse arcabouço regulatório que só faz sentido à cannabis medicinal.

Flexibilização  

Também lembro que uma simples flexibilização da Portaria 344 que permitisse, por exemplo, pelo menos a liberação da importação de cânhamo já mudaria toda a perspectiva do mercado. O uso da matéria-prima importada e beneficiada em nosso país garantiria investimentos em aplicações desenvolvidas por empresas brasileiras. Essa ação facilitaria muito as pesquisas de uso industrial da planta que, certamente, resultariam em patentes nacionais, além de geração de emprego e renda, além de impostos para os cofres do governo.

É sabido no mundo inteiro que o cânhamo oferece mais de 25 mil possibilidades de aplicação na indústria. Com toda a sua versatilidade, o cânhamo pode ser empregado na construção civil, na indústria têxtil, na produção de papel e celulose, na indústria de cosméticos, na produção de biocombustíveis, entre tantas outras aplicações.

Daria para fazer uma lista imensa para demonstrar todo o potencial de mercado que estamos desperdiçando devido a um detalhe técnico na regulação do cânhamo por parte da Anvisa.

Reflexos

Isso posterga o emprego da planta como uma alternativa sustentável, e que tem tudo para trazer muitos benefícios à produção agrícola nacional e tornar-se uma nova commodity, gerando importantes receitas em moeda forte como um novo item no rol de exportações do país. 

A semente de cânhamo é um superalimento que está na pauta de grandes empresas do mercado internacional. Seria uma forte aliada na luta contra a fome e a escassez de alimentos, inclusive para animais, por conta da crise provocada pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, por exemplo. Isso para ficar apenas em uma de suas possibilidades de uso.

Das variedades de cânhamo que produzem sementes e fibras, não há nenhum traço de THC. Das sementes se extraem óleos, se produzem alimentos, cosméticos e até mesmo biocombustíveis.  

Quando se fala em biocombustíveis à base de cânhamo, lembramos que essa é apenas uma das pegadas sustentáveis da planta. Substitui, com vantagem, matérias-primas fósseis, tão nocivas ao meio ambiente e ao clima do planeta.

Mesma tecla

Seu cultivo tem como vantagens o menor consumo de água para o seu desenvolvimento, e seu aproveitamento é integral. Da raiz e do caule até o topo da planta, tudo se aproveita, sem contar a propriedade de fito-remediação de solos degradados.

Por essas e outras razões que vou continuar batendo firme na mesma tecla, até que nossas autoridades consigam enxergar o prejuízo que causa essa confusão de plantas. Repito: isso provoca um atraso enorme no desenvolvimento da cadeia produtiva do cânhamo no Brasil e no quanto a planta poderia proporcionar à nossa economia, e ao agronegócio nacional.

Mesmo balaio

O prejuízo recai sobre todos nós. Com isso, o Brasil não consegue encurtar a distância em relação ao que se faz em outros países que não criminalizam o cânhamo como o Brasil o faz. Basta lembrar que a China é um dos países que mais produz cânhamo em seu território, a despeito de todas as suas rígidas leis antidrogas. 

É preciso que trabalhemos em prol da mudança de status do cânhamo perante a Anvisa. Essa situação de misturar tudo no mesmo balaio tem de ser revista.

Na prática, enquanto o cânhamo continuar proscrito no Brasil pelos efeitos retrógrados da Portaria 344, nosso avanço nesse mercado promissor permanecerá nulo.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Sobre o autor: Marcelo Grecco diretor de Marketing da The Green Hub, consultoria e aceleradora de startups com foco exclusivo no mercado legal da cannabis.