O uso de cannabis e o princípio da segurança jurídica

"As drogas, legais ou ilegais, não podem ser consideradas prejudiciais à saúde, até que objetivamente se analise a tríade sujeito/substância/contexto; assim como uma faca na gaveta da cozinha não pode ser considerada uma arma.", afirma a advogada Cec

Publicada em 20/12/2021

capa
Compartilhe:

Coluna de Cecilia Galício

Em tempos tão dinâmicos para a discussão e a penetração do assunto “cannabis no Brasil”, os juristas atuantes têm buscado, junto ao Poder Judiciário, através de medidas judiciais adotadas em favor de pacientes e associações, a proteção das pessoas, para se obter alguma garantia de que o Estado não será violento, ou seja, assegurar que as pessoas que cultivam cannabis com finalidade terapêutica não sejam presas e nem sofram a violência cotidiana praticada pelas polícias. Esta segurança visa garantir uma das necessidades básicas do ser humano. E, como um elemento da segurança, existe a segurança jurídica. Mas do que se trata a segurança jurídica? 

Segurança jurídica implica na garantia de efetivação de direitos declarados pela Estado. Pela importância que este conceito tem na garantia de uma necessidade básica do indivíduo, a segurança, devemos invocar este conceito, inicialmente, como princípio. Um princípio que molda a fundação e a razão de ser do Estado Democrático de Direito. 

Num breve histórico, a expressão Estado de Direito, como conhecemos, é fruto das Revoluções Americana e Francesa, que perseguiu a limitação do arbítrio dos detentores do poder a partir de princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade. É o nascer do anseio pelo reconhecimento do Estado à dignidade humana, o início das teorias do Estado do bem-estar social, as reações pelo socialismo, comunismo, e, finalmente, até que o Estado de Direito passa a ser associado com a democracia política¹. E a Constituição é o instrumento sine qua non do Estado Democrático de Direito. O grande cerne das constituições do século XX é a organização do poder político, que, segundo o Prof. Jorge Miranda, “não se cuida apenas de realizar até ao fim, de qualquer forma e em qualquer momento, a vontade popular, cuida-se também de sujeitar a vontade popular à soberania do Direito e portanto, antes de mais nada, da própria Constituição.”²

Sobre o Estado de Direito e a democracia, nos ensina Jorge Reis Novais que a tensão instalada entre o Estado de Direito, garantidor dos direitos individuais, e a Democracia, na apreciação coletiva desses direitos, é a que fornece a junção ideal para a Estado Democrático de Direito, e ainda escreveu: “Nestes termos, o Estado social de Direito é indissociável da estrutura democrático do Estado, o que, se por um lado exclui, como veremos, a ideia de uma eventual antinomia com o Estado democrático de Direito, rejeita igualmente e desde logo, qualquer possibilidade de caracterização como Estados sociais de Direito de regimes onde não se verifique a existência de uma verdadeira democracia política. Assim, se o Estado de Direito tem sido no século XX, por exigência da verificada assunção do novo princípio de socialidade, Estado social de Direito, o Estado social de Direito é, por inerência dos valores que prossegue, Estado democrático de Direito.”³ Assim, o Princípio da Segurança Jurídica implica na certeza do direito, porque dele origina o fato de que todos os atos que derivam do Estado, quer sejam eles da esfera administrativa, legislativa ou judiciária devem estar baseados num fundamento de legalidade, no caso, na Constituição. 

As intervenções do Estado na vida daqueles que lhe são subordinados (cidadãos) obedece a um quadro de limitações, qual seja, o respeito pelos direitos e liberdades individuais, que são seus pressupostos, mas vai além. Imputa ao Estado as obrigações do diploma que lhe confere status. É este o posicionamento do Prof. Jorge Reis Novais, que, em outras palavras: “Mesmo que a Constituição não institua expressamente um princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, ele é, seguramente, um princípio essencial na Constituição material do Estado de Direito, imprescindível como é, aos particulares, para a necessária estabilidade, autonomia e segurança na organização dos seus próprios planos de vida. De resto, a luta pela Constituição e pelo Estado de Direito era também, desde os primórdios das revoluções liberais, uma luta pela segurança jurídica no sentido de um projeto de organização racional do Estado e da sua atuação que mantivesse a esfera dos particulares, nomeadamente no domínio da sua atividade económica, ao abrigo das arbitrariedades típicas de um exercício ilimitados dos poderes de autoridade que caracteriza o Estado absoluto."  Diante destes argumentos, percebe-se que segurança jurídica é mais do que um princípio: a figura de um Estado se manifesta na escolha de sua forma de governo, na criação de suas leis, na garantia de execução de seus preceitos, na subsunção de sua autoridade aos seus nacionais, pelo uso que faz das competências que essas leis lhe conferem, de sua identidade, ou seja, diz respeito ao que somos como nação. A segurança jurídica, portanto, é instrumento garantidor do Estado Democrático de Direito. 

Bem, mas o que tudo isso tem a ver com a maconha? Ainda estamos falando de encarceramento em massa, e de violência policial: o que sabemos é que o direito penal das drogas é um direito penal de exceção: se analisarmos bem, a lei de drogas não protege o bem jurídico a que se destina: é crime de perigo abstrato, sem vítima, tornado hediondo e de castigo desproporcional. O que não devemos perder de vista nunca é que não são as drogas que geram criminalidade e violência, nem são os consumidores responsáveis pela violência dos “traficantes”: o Estado é quem cria a ilegalidade, e consequentemente, gera criminalidade e violência. O principal pressuposto violado pela Lei de Drogas é que só ao indivíduo, senhor do seu próprio corpo, cabe decidir o que consumir; assim, a intervenção penal relativa ao controle das drogas só pode ser considerada legítima se voltada à proteção de menores e incapazes de um modo geral, como é o caso, por exemplo, das drogas lícitas. A luta e a resistência defendem a liberdade para o consumo, que implica, logicamente, na defesa da liberdade de produção e comércio para pessoas capazes. Sob esta premissa, quando a lei de drogas criminaliza o uso, passamos a identificar aquela ação como uma conduta desvirtuada, ou seja, a criminalidade está relacionada a prática de atos tipificados em lei como contrários aos valores e regras sociais. As drogas, legais ou ilegais, não podem ser consideradas prejudiciais à saúde, até que objetivamente se analise a tríade sujeito/substância/contexto; assim como uma faca na gaveta da cozinha não pode ser considerada uma arma. Se o uso de drogas (lícitas ou ilícitas) não pode ser proibido, como tratar do acesso à substância? Hoje o acesso à substância, até mesmo pelos pacientes, é feito através do mercado ilegal; não nos parece razoável que isto seja tomado como antidemocrático? Não parece razoável que devamos também cuidar e proteger também essas pessoas da violência da prisão? Defender o ideal de uma sociedade mais justa não é fácil e por vezes esbarramos em fatos que nos levam de volta ao princípio de tudo: é o próprio Estado, através da Lei de Drogas, quem gera o encarceramento e insegurança. A conclusão a que chegamos é a de que a luta pela segurança jurídica no que diz respeito à maconha, seus usuários, aos pacientes que dela dependem, é uma luta também pelo próprio Estado Democrático de Direito. Isso tudo sem nem tocar no assunto dignidade da pessoa humana.

Referências Bibliográficas

¹ FERNANDO JOSÉ CUNHA BELFORT, Estado democrático de direito e direitos humanos, in Direitos Humanos, Paz e Estado Democrático de Direito.

² JORGE MIRANDA, As experiências constitucionais face a uma Europa Unida, in Os princípios fundamentais da organização política em Portugal.

³ JORGE REIS NOVAIS, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional.

Cecilia Galício é advogada militante pelo fim da Guerra às Drogas, mestre em Direito Internacional Público, integra a diretoria da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas - Rede Reforma, é Conselheira Suplente do Conselho Estadual de Política sobre Drogas de São Paulo - CONED/SP pela Acuca, integrante da RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.