O caminho do norte

Em sua nova coluna no Sechat, Maria Ribeiro da Luz traça um panorama do mercado de cannabis canadense em comparação com o brasileiro que, mesmo com a aprovação do PL 399/2015, ainda caminha lentamente

Publicada em 15/06/2021

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Coluna de Maria Ribeiro da Luz*

A votação do PL 399/15, aprovada recentemente pela comissão especial da Câmara dos Deputados, representa um grande avanço na longa estrada brasileira para a regulamentação da cannabis. Apesar do PL399 não contemplar o cultivo individual e isentar a possibilidade de qualquer nuance de reparação histórica, essa aprovação nos movimenta em direção a uma futura reforma significativa.  

Refletindo sobre esse humilde grande avanço, não podemos ignorar estarmos inseridos no nosso usual contexto de retardo tropical.

Refletindo sobre esse humilde grande avanço, não podemos ignorar estarmos inseridos no nosso usual contexto de retardo tropical. Esse atraso nos proporciona o consolo de podermos nos inspirar com trajetórias, acertos e erros dos países que começaram esse percurso há alguns anos. 

A vida tem muitos recomeços, e na minha, os próximos capítulos vão acontecer em Montreal, no Canadá. Portanto, nessa e nas próximas colunas, vou trazer um olhar brasileiro de uma perspectiva canadense. Hoje, como introdução, venho propor um panorama do processo de regulamentação da cannabis por aqui, país considerado referência no assunto e dentre os maiores produtores da erva no mundo.

A cultura da cannabis gerava recursos muito antes do Canadá ser oficialmente um país. Acredita-se que a cannabis tenha sido cultivada pelas comunidades indígenas para fins terapêuticos, culturais, e têxteis, mas tudo se transformou em fumaça quando em 1923 a planta foi criminalizada.

Essa decisão passou por avaliações, particularmente pela "Comissão Le Dain" de 1969, mas só foi de fato questionada quando Terrence Parker, paciente epiléptico, foi preso e acusado por posse, inúmeras vezes, desde 1987. 

Após tentar as medicações convencionais, Parker se submeteu até a um procedimento cirúrgico para tratar sua condição, mas descobriu que fumar maconha era o melhor tratamento para reduzir drasticamente suas convulsões. Como ele não tinha acesso à maconha, ele mesmo cultivava suas plantas. 

O caso acabou no Tribunal de Ontário, que decidiu que proibir Parker de possuir e cultivar cannabis para tratar sua condição o privou de seus direitos à saúde, liberdade e segurança. Este precedente finalmente anulou a proibição da maconha no Canadá para usuários com necessidades médicas. Parker foi fundamental para o direito de acesso à canábis medicinal, após uma série de batalhas legais pelos direitos constitucionais dos pacientes.

Em 2001 O programa MMAR ( Medical Marihuana Access Regulations) concedeu acesso legal à maconha para os canadenses que não conseguiam encontrar alívio através de tratamentos convencionais. Isto significava que os pacientes poderiam obter uma autorização médica para cultivar sua própria cannabis, ou poderiam obtê-la diretamente do sistema de saúde canadense, a Health Canada.

Em 2013, sob um programa revisitado (MMPR), a Health Canada regulamentou, mas não mais forneceu ou distribuiu a cannabis. Os pacientes obtinham a documentação e compravam sua maconha através de produtores licenciados pelo governo. Essa mudança foi fundamental para que a Health Canada priorizasse a qualidade do produto e segurança, ao invés da distribuição. 

Assim nasceu o mercado comercial de maconha do Canadá. Atualmente o país conta com mais de 500 licenças de cultivo, divididas entre produtores "standard" e "micro", este último com área produtiva de 200m2, e até 600 kg de produto por ano.

O sistema mudou mais uma vez como resultado de um processo judicial, quando em 2016 o tribunal decidiu que o MMPR não atendia o direito dos canadenses à um justo acesso a maconha para fins medicinais. Isso levou a uma nova atualização do programa e de suas complicadas siglas. 

A então ACMPR não altera o papel dos médicos, e os pacientes ainda têm acesso à cannabis pelos produtores licenciados, mas a novidade permite aos inscritos de se registrar e obter uma licença para cultivo das próprias plantas. O número de plantas que os pacientes podem cultivar depende da dosagem prescrita e da quantidade média produzida por uma planta de cannabis. O governo conta até com uma sofisticada calculadora para determinar o número de plantas em função da dose do paciente.

Após 95 anos de ilegalidade, em 19 de junho de 2018, foi aprovada no Senado a regulamentação do uso adulto, tornando-se oficial em 17 de outubro de 2018.

Cada província tem seu próprio conjunto de regras relativas à compra e ao uso da maconha. Em geral, canadenses maiores de 19- 21 anos (dependendo da província), podem comprar online ou fisicamente as mais variadas cepas de flores e óleos de canabinóides em alguma das diversas lojas regulamentadas, essencialmente  estabelecimentos do governo. Plantas e sementes também podem ser adquiridas, se a província permitir o cultivo doméstico. 

Os adultos maiores de idade podem portar até 30 gramas de cannabis proveniente do mercado legal, e podem cultivar até quatro plantas por domicílio (exceto em Quebec e Manitoba, onde o cultivo doméstico é proibido). 

Em março de 2020, houve aumento nas vendas de produtos de cannabis. Durante a pandemia a cannabis foi sabiamente listada entre os produtos de primeira necessidade. A maioria das operações de cannabis estavam ativas durante a quarentena do país. 

Toda a organização da regulamentação vigente, gradualmente amadurecida para atender o mercado, contempla de um lado a cadeia de produção, e de outro, um consumidor acostumado com qualidade, tendo como base, num contexto geral, o nível de suporte fornecido pelo governo canadense. Contudo, em se tratando de cannabis, atualmente no Canadá, nem tudo são flores. Ou melhor, são flores sim, mas estão envelhecendo.

Dados atuais de mercado apontam que os produtores estão estocando mais cannabis do que nunca. Enquanto isso, no final da cadeia, os produtos empoeiram nas prateleiras. Os dados da Health Canada mostram cerca de 9 milhões de unidades embaladas e disponíveis em abril, em comparação com apenas 1 milhão em vendas. É um excesso que continua a pesar sobre a indústria, possivelmente antecipando reduções e fechamentos de instalações nos próximos meses. 

Qualidade e excelência são atributos difíceis de se encontrar numa produção em larga escala.

O consumo não decaiu, mas a produção atingiu níveis impossíveis de serem escoados. Sobretudo, em se tratando de um consumidor exigente, que busca por qualidade, e tem variedade suficiente para refinar seu paladar. Qualidade e excelência são atributos difíceis de se encontrar numa produção em larga escala.

A análise deste percurso, bem como a caminhada de uma série de outros países que já percorreram as trilhas da cannabis, revelam para o Brasil um mapa bem desenhado dos caminhos que poderíamos escolher, e clareia  outros que talvez seja o caso de evitarmos seguir. A comoditização aconteceu mais rápido do que o esperado, mostrando que não adianta produzir maconha sem ter fogo para queimar.

*Maria Ribeiro da Luz é graduada em design de moda no Brasil e na França e colunista do Sechat.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

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