A nova era da terapia psicodélica em 2024

Pesquisadores apostam em um horizonte promissor com mais evidências científicas, avanços regulatórios e diálogo com a sociedade

Publicada em 05/02/2024

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Por Carlos Minuano

Em 2023, o cenário psicodélico global foi marcado por significativos avanços.  

Nos Estados Unidos, o ano que teve um congresso gigante em Dever terminou com a previsão da aprovação de terapia com MDMA para tratamento de traumas.  

A Austrália saiu na frente e regulamentou o uso médico do MDMA e também da psilocibina, dos cogumelos alucinógenos. 

No Brasil, houve casamento gay no Santo Daime e uma pesquisa inovadora com DMT extraída da jurema, uma planta psicoativa do nordeste. 

 

Para fazer um balanço do ano que passou e arriscar algumas tendências e análises para 2024, Psicodelicamente ouviu alguns pesquisadores do meio psicodélico em atividade no Brasil e em outros países.   

‘Estudos têm mostrado segurança e eficácia terapêutica’ 

 

Para Dartiu Xavier, médico psiquiatra da Unifesp, 2023 foi um ano de avanços, com pesquisas em volume cada vez maior. “Estudos de fase 2 ou 3 têm mostrado segurança e eficácia terapêutica.” 

Sob a supervisão do médico estão sendo realizados ensaios clínicos para tratamento de dependentes químicos com psilocibina, cetamina, ayahuasca e ibogaína. Os primeiros resultados devem ser publicados em 2024. 

“Estamos investigando também, em colaboração com a Universidade de São Francisco, na Califórnia, os efeitos colaterais envolvidos no uso não-médico de psicodélicos, comparando o uso terapêutico com os usos religioso e recreativo.” 

Xavier cita ainda o avanço de aspectos legais em vários países e alguns estados americanos, que descriminalizaram inclusive o uso recreacional de psicodélicos, mas faz críticas ao Brasil. “Infelizmente nesta área o país continua na contramão da história, defendendo uma política repressiva de criminalização dos usuários.” 

‘Regulamentação tem que pensar no sistema público de saúde’  

 

Há uma crescente preocupação da sociedade com a regulamentação dos psicodélicos, especialmente dos usos em psicoterapia, observa o psicólogo Fernando Beserra, cofundador e coordenador da APB, a Associação Psicodélica do Brasil. 

Para este 2024, ele aguarda a regulamentação do MDMA (e quem sabe também da psilocibina) para o uso em psicoterapia nos EUA. “Contribuirá para a expansão dessas terapias em outros países.”  

Esses movimentos exigem, ressalta ele, uma análise crítica sobre modelos de regulação. “Em países como o Brasil, é mais importante que se preocupem com o acesso a essas terapias nos sistemas públicos de saúde, ao invés de focar exclusivamente na questão comercial.” 

Ele destaca ainda a ampliação do debate sobre as psicoterapias de integração em conselhos de psicologia (federal e regionais) com a participação da APB. Segundo Beserra, uma discussão que não se vincula à prescrição médica. “Envolve a preparação, integração da experiência e eventualmente o suporte durante o uso.”   

Ainda sobre 2023, o coordenador da APB destaca uma reunião para debater a regulamentação do uso terapêutico de psicodélicos convocada pelo InMetro, que aconteceu no final do ano e deve repercutir em 2024. O encontro teve a participação de agências reguladoras, como a Anvisa, grupos de pesquisa e organizações do terceiro setor (entre elas, a APB).   

‘Psicodélicos devem ser usados em ambientes controlados’ 

 

Um destaque de 2023, na opinião de Bruno Rasmussen, diretor médico das Clínicas Beneva é uma iniciativa em Kentucky, nos Estados Unidos, que mira a ibogaína (um alcalóide psicoativo derivado da planta africana iboga), usada para tratamento de dependência química. 

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O estado recebeu uma verba indenizatória de milhões de dólares e por sugestão de algumas autoridades locais pode ser que esse dinheiro seja investido em pesquisas sobre a substância em 2024.   

Seria útil para facilitar a aceitação por parte das agências governamentais, no caso dos Estados Unidos, e incentivar mais pesquisas e até a adesão do uso da ibogaína como tratamento oficial para dependência no país.” 

Rasmussen lembra também de um acontecimento negativo que marcou o campo dos psicodélicos no final de 2023: a morte do ator Matthew Perry. Mas, observa que o evento trágico deixa uma lição importante. “Mostra que substâncias como a cetamina devem ser usadas em ambientes controlados com acompanhamento profissional.” 

Dúvidas sobre segurança de tratamentos precisam ser ouvidas’ 

 

Consolidação das pesquisas e avanço no debate sobre o potencial terapêutico dos psicodélicos marcaram 2023, segundo Renato Filev, biomédico e pesquisador da Unifesp. 

Para este ano, ele prevê uma concretização no sentido regulatório do acesso formal aos psicodélicos para fins terapêuticos. “Podemos esperar mais pesquisas sendo feitas e o debate se aprofundando.”   

Para Filev, alguns questionamentos que estão surgindo quanto à segurança do tratamento com essas substâncias precisam ser ouvidos. “É possível que a gente avance no sentido de encontrar respostas para algumas dessas perguntas.” 

‘Casamento homoafetivo no Santo Daime marcou 2023’ 

 

“No Brasil, um evento significativo no campo psicodélico foi o primeiro casamento homoafetivo dentro de uma igreja da doutrina do Santo Daime”, diz a pesquisadora da Universidade Federal do Acre, Julia Lobato Moura. 

Em dezembro, um casal de mulheres oficializou seu matrimônio sob as bênçãos do ritual do Santo Daime no centro daimista Céu da Divina Estrela, em Minas Gerais.   

Segundo a pesquisadora, o acontecimento foi bastante comemorado porque o preconceito contra a comunidade LGBT+ ainda é muito presente nas comunidades ayahuasqueiras na Amazônia e nos grandes centros. “Espero que em 2024 tenhamos mais debates relevantes no cenário dos psicodélicos”, diz Moura.   

Para ela, os pontos mais urgentes são os avanços nas pesquisas sobre usos terapêuticos e políticas de conscientização contra abusos no contexto religioso.   

Moura também aponta a necessidade de fomento aos intercâmbios interculturais com os povos indígenas e a salvaguarda dos direitos religiosos dos adeptos do Santo Daime no Brasil e no mundo. “A luta continua pela liberdade psicoativa e religiosa em vários países.” 

‘Primeiras cápsulas de psilocibina serão desenvolvidas no Brasil’ 

 

“Um destaque de 2023 foi a pesquisa que mostrou que uma dose única de psilocibina teve um efeito antidepressivo rápido e sustentado em pacientes com transtorno depressivo maior, comparado com um placebo ativo”, aponta Stevens Rehen, neurocientista da UFRJ e dos institutos D’Or e Usona, dos  EUA. 

Em 2023, o grupo do neurocientista também publicou o primeiro estudo do mundo usando ‘c elegans’ (vermes multicelulares que têm mais de 70% de genes semelhantes aos dos humanos) como modelo experimental para o estudo de psicodélicos.   

“Nossa expectativa é acelerar a compreensão dos efeitos biológicos mais básicos dos psicodélicos com esses pequenos animais. Para 2024 teremos novidades nessa área.” 

 

Rehen também cita o evento promovido pelo Inmetro onde foi divulgada a atuação da startup Scirama (da qual o pesquisador faz parte) no desenvolvimento das primeiras cápsulas de psilocibina no Brasil em parceria com universidades via lei de inovação tecnológica.   

 

‘DMT extraída da jurema facilita o protocolo terapêutico’ 

 

“Foi marcante em 2023 o governo australiano ter regulamentado alguns psicodélicos para o tratamento de determinadas psicopatologias”, comenta Nicole Galvão, pesquisadora da UFRN. 

Mas ela vê esse cenário com cautela. “Parece uma decisão um pouco precipitada, porque estudos ainda estão amadurecendo e há escassez de profissionais aptos para tais terapias”. 

 

Por outro lado, mostra que é possível haver a transferência do conhecimento científico para a prática clínica, pondera a pesquisadora. “Os estudos são feitos com essa finalidade mesmo, para que tenham impacto e melhorem a vida da sociedade de maneira geral.” 

 

No contexto brasileiro, ela destaca os estudos do grupo de pesquisa do qual faz parte, coordenado pelo neurocientista Dráulio de Araújo, que foram publicados no final de dezembro com DMT inalado.   

 

“Fizemos um estudo de fase 1 para avaliar a segurança e a tolerabilidade da DMT, extraída da jurema (uma planta psicodélica do nordeste) com resultados satisfatórios.”   

 

Agora o grupo está preparando um segundo artigo, que mostra a resposta antidepressiva da substância. “Esses estudos são pioneiros, não há no mundo um estudo com DMT inalado nesse campo.”   

 

Outro aspecto que eleva a importância do estudo dentro do contexto da medicina psicodélica é a extração do DMT da jurema, observa Galvão. “Estamos valorizando os recursos naturais nacionais”. Além disso, a substância tem um efeito rápido que facilita o protocolo terapêutico, reduzindo custos.   

 

Para 2024, o grupo pretende ampliar os estudos com DMT e atuar na formação de profissionais da saúde. “É importante que quando essas terapias forem autorizadas no Brasil não haja escassez de profissionais, como ocorre hoje na Austrália.” 

 

‘Psicodélicos se consolidaram como campo de estudos’ 

 

Para Luís Tófoli, psiquiatra da Unicamp, 2023 foi o ano da legitimação dos psicodélicos como campo de estudo. “Estão no mainstream da medicina, os psiquiatras convencionais se interessam cada vez mais.” 

Segundo o pesquisador, “outra tendência de 2023 foi o crescimento do número de pessoas buscando tratamentos psicodélicos, muitas vezes com indicações inadequadas ou ainda sem ter explorado as possibilidades de tratamento já disponíveis, incluindo a psicoterapia”.   

 

“No caso dos psicodélicos, estamos falando de tratamentos que não foram oficializados em contexto algum, muitas vezes com drogas proibidas.”   

 

“Essa busca gera uma oferta”, ressalta Tófoli. “Nunca vi tamanha quantidade de oferta de terapias não sancionadas, desde gente que funda igreja até terapeutas holísticos que oferecem tratamento com psicodélicos, cresceu muito.” 

 

Tófoli adverte que as pessoas estão buscando tratamento para indicações que são duvidosas, caso por exemplo da microdose. “Não há nenhuma evidência de que microdosagem de qualquer psicodélico seja indicada para tratar depressão.”   

 

Para 2024, ele também prevê desdobramentos do estudo com DMT inalado da UFRN. “Eles pretendem desenvolver um tratamento para depressão.” 

O médico destaca a inovação da pesquisa. “Não se trata da DMT da ayahuasca, e sim da jurema, isso é inovador, ninguém tinha feito isso antes.”