Não interessa quem é a favor do cânhamo, o importante é identificar os atores contrários

Embora seja verdade que a indústria da cannabis ainda precisa aprimorar sua organização e cooperação mútua, é mais urgente entender quem verdadeiramente é contra

Publicada em 04/06/2023

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Por Rafael Arcuri

Existe uma lenda de que o cânhamo só não é legalizado por causa do lobby das indústrias x, y, z. Não fosse a articulação desses grupos, impedindo a proliferação de uma planta muito mais rentável, sustentável e útil, o cânhamo seria o cultivo que salvaria o mundo. Isso, contudo, não é verdade - pelo menos não no Brasil dos últimos anos.

A indústria da cannabis é desorganizada e excessivamente relutante em se articular de maneira conjunta, mas esses não são os únicos motivos para a proibição do cânhamo. Existe um problema na não-identificação dos reais antagonistas ao discurso da legalização do cultivo em território nacional - e mesmo da legalização da importação dos produtos finalizados ou da matéria prima.

Parece existir, por parte de muitas pessoas que atuam no mercado da cannabis, uma imaturidade no tratamento da “indústria”, do “agro”, como se fossem entidades homogêneas de pensamento refratário à cannabis, a priori e de maneira absoluta. Mas isso simplesmente não é verdade e existem dois excelentes exemplos:

  • - Damares contraria Osmar Terra na Comissão de Direitos Humanos quando diz que os expositores não precisam convencê-la de que a cannabis é medicinal, “eu já me convenci disso”. Essa afirmação veio com grande peso após a apresentação de Osmar Terra fazer associações grotescas do uso medicinal da cannabis aos piores exemplos de pessoas sofrendo por abuso de drogas como ópio e cocaína;

  • - Em 2020, o presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, a bancada mais importante do Congresso Nacional, Alceu Moreira (MDB-RS), disse: “O Brasil está passando por um período de grande diversificação de culturas e se essa cultura for absolutamente rentável para quem produz e absolutamente lícita e segura, eu não tenho dúvida que teremos produtores rurais querendo produzir tanto cânhamo quanto cannabis para medicamentos”. Comentou, ainda, que haveria certa hipocrisia no fato de o país ter permitido a venda em farmácia de medicamentos à base de cannabis e continuar proibindo o cultivo da planta para esses remédios. 

Damares foi o bastiã dos bons costumes no governo passado e contrariou, agora como senadora, um dos deputados mais refratários à cannabis na história desse país. Ainda que ela não tenha defendido  o cultivo, mostrou-se simpática ao trabalho de associações como a Santa Cannabis. Isso evidencia a complexidade da atual fragmentação da direita nacional no que diz respeito à cannabis.

Por outro lado, o agro reafirma o óbvio, numa tautologia mercadológica: o que não for proibido e der lucro, será objeto de exploração econômica. Não existe mistério nisso, mas parecem existir posicionamentos que ignoram essa realidade.

Mas precisamos colocar os números da cannabis em perspectiva com a realidade atual. A perspectiva de uma reforma tributária que poderá aumentar a alíquota do agro de muito pouco para 20-23% parece ser uma questão muito mais relevante. No lado da indústria farmacêutica, temos produtos fitoterápicos que, sozinhos, já equivalem a quase a totalidade da expectativa de ganho com a cannabis medicinal (sim, vários bilhões, produção nacional, um uso terapêutico).

Isso faz com que as pessoas que já têm certo preconceito com a planta não tenham vontade de se informar o suficiente sobre os benefícios sociais e econômicos que ela pode trazer. Isso é muito mais relevante do que quem atuaria ostensivamente contra, em um lobby escondido e escuso.

Qual a solução? Lobby. Relações Governamentais. Relações Institucionais. Conversar com bons dados, como os da Kaya Mind, com quem vai tomar decisões. Falar na linguagem específica de cada tomador de decisão, na hora certa, com foco e consistência, é fundamental. E isso não tem sido feito, pelo menos não na forma/tempo como deveria (e esse argumento também é tautológico/auto evidente já que, se estivesse sendo feito da forma e tempo suficiente¹, as decisões teriam sido tomadas a favor da cannabis).

Mas ainda não temos um mapa claro de quem são esses atores que precisam ser convencidos e como, por meio de quais argumentos. A indústria ainda não possui  quase nenhum conhecimento sobre o tema. O tabaco nacional não está seguindo a onda de aquisições e fusões com empresas de cannabis que têm sido realizadas no exterior. O agro ainda acha que o cânhamo é psicotrópico. 

A agenda regulatória da cannabis precisa de um trabalho de mapeamento ostensivo, claro e atual de quem são os stakeholders que precisam ser convencidos. talvez mais do que um mapa dos apoiadores.

¹ Condição Suficiente: A declaração A é dita ser uma condição suficiente para a declaração B se saber que A é verdade garante que B também é verdade.*

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Rafael Arcuri* é advogado, Diretor Executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em direito regulatório, mestre e doutorando em direito e políticas públicas e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.