Mundos distantes, eleições e o país do eterno retrocesso

Sempre achei muito irônico e paradoxal que o país do carnaval e da boemia, que retrata uma vida noturna, a bebedeira e a situação tragicômica das relações amorosas, se travestir a luz do dia em um pilar de moralidade em defesa dos bons costumes

Publicada em 20/10/2022

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Por Lorenzo Rolim

Muito tempo atrás, quando comecei a escrever sobre o tema Cannabis no universo da internet, eu era bastante apegado a boas notícias, sempre buscava os acontecimentos mais recentes e animadores. Procurava  trazer para leitores que estavam sedentos por alguma ponta de esperança que a Cannabis teria um futuro brilhante. E por muito tempo fui bem-sucedido nessa empreitada, vivi por dentro da indústria todo o BOOM que o mercado canábico passou desde seu início com o Canadá tomando a liderança, passando por toda a bolha de especulação financeira até mais recentemente com um mercado mais maduro e sólido e processos de regulamentação de países muito mais inteligentes do que aqueles primeiros.

Porém, se você leitor buscar as minhas últimas colunas aqui no Portal SECHAT, vai ver que meu tom de voz normalmente é de pessimismo ou no mínimo combativo, lutando contra a dura realidade de que nosso país parece um carro atolado, roda, roda, força o motor, suja todo mundo de lama, mas não consegue sair do lugar.

Estava remoendo o que escrever nesta coluna, desde a minha última contribuição para o portal passei por algumas experiências interessantes,  muitas delas me faziam ter vontade de escrever e trazer algo aqui. Acontece que  o clima de eleições parecia sempre ocupar totalmente minha atenção quando sentava para escrever e acabei empurrando esse assunto indigesto o máximo possível.

Admirável mundo novo

Durante esse período, visitei Nova York após a legalização, e vivenciei uma cidade totalmente diferente e com cores (e cheiros) que muito me lembraram a época em que morei na Califórnia. A Cannabis se tornou tão comum aos nova-iorquinos quanto as lojas da Starbucks, presente em toda esquina e totalmente inserida no cotidiano dos cidadãos locais. 

A primeira coisa que me veio à mente, como morador da grande São Paulo, foi como seria se tivéssemos experimentado esse processo civilizatório por lá também, afinal, as duas metrópoles têm suas semelhanças e ao mesmo tempo são completamente diferentes, e isso vale muito para a relação da população com a Cannabis. Acredito que em número de consumidores, é bem possível que São Paulo tenha mais consumidores diários de Cannabis do que NY, ou seja, em uma cidade  legalizada seria comum ver pessoas fumando na rua, nos parques e nas áreas de fumantes de aeroportos, como vi todos os dias que estive em NY, tudo com muito respeito, sem nenhuma histeria e com um ar de normalidade que faz parecer que vivendo no Brasil, vivemos em um mundo muito distante daquele, quase que uma viagem para outra dimensão. A diferença basicamente é que fumando na rua aqui você pode a qualquer momento levar um ‘enquadro’ da polícia e prejudicar muito sua própria vida e pode até significar muitos anos de prisão. 

Com certeza essa máxima não vale para mim, um homem branco que vive a uma quadra da Av. Faria Lima, porém é a realidade diária de muita gente das periferias e outras partes da cidade.

Como se não bastasse esse choque de realidade diário (que para mim foi muito mais impactante do que em qualquer cidade da Califórnia que eu já vivi) algumas semanas depois vem o Presidente Biden e inicia um processo de perdão de sentenças relacionadas à posse e consumo de Cannabis nos EUA. Fato que já estava demorando demais para acontecer, e que mais uma vez esfrega na cara dos brasileiros como ainda somos um povo atrasado e retrógrado, que vive nesse mundo paralelo de hipocrisia. Quanto potencial humano temos desperdiçado hoje preso atrás de grades injustamente, fazendo pós-graduação no crime, sofrendo com uma condenação de simplesmente portar uma pequena quantidade de uma planta que é legalizada em boa parte do mundo civilizado?

Quase que em sincronia com o pedido de Biden, vimos agora o Conselho Federal de Medicina do Brasil (CFM) acelerar na direção contrária. Publicaram uma nova normativa com a intenção de restringir os médicos brasileiros a prescreverem o uso da Cannabis e seus derivados somente para doenças muito raras e em situações específicas, sob ameaça de perseguição. E médicos esses que, diga-se de passagem, merecem meu reconhecimento por estarem bem mais avançados do que a população em geral em relação aos benefícios da Cannabis para saúde.

O impacto das eleições

Em cima disso tudo, temos um período eleitoral, talvez o mais traumático e divisionista que já tivemos nos últimos anos, com dois candidatos com mais votos contrários ao adversário do que em si mesmos, no qual ambos assumiram ser contra a liberação das drogas para captar votos da eterna categoria de cidadãos que parece deter todo o poder nesse país, os intocáveis Conservadores.

Sempre achei muito irônico e paradoxal que o país do carnaval e da boemia, com estilos musicais tão diversos e que descrevem em suas canções a vida noturna, a bebedeira, a situação tragicômica das relações amorosas, esse mesmo país quando sai a luz do dia de alguma forma se traveste em pilar de moralidade e defesa dos bons costumes. Desconfio que se Tim Maia fosse vivo hoje, seria pastor evangélico.

Por esses motivos, nosso atual candidato da esquerda, Lula, agora fala em ser pessoalmente contrário ao aborto e nem ousa comentar sobre liberação da Cannabis. Pelo mesmo motivo, o nosso atual presidente, Bolsonaro, já afirmou diversas vezes ser contra qualquer droga e até acusa a esquerda de ser favorável à liberação de todas elas. 

Ah como eu queria que você estivesse certo, meu caro Bolsonaro. Porém, o que vemos hoje na esquerda brasileira é um distanciamento, quase que um rompimento, com essa pauta tão importante.

O que nos resta, ao final desse meu relato/desabafo, é seguir lutando como sempre estivemos, municiados pelas únicas armas que temos, a ciência e a razão, e continuar em busca de nossa liberdade e da soberania individual em buscar o direito à saúde e ao bem-estar. Porém, admito, que às vezes cansa essa eterna luta por algum progresso no que parece ser o país do eterno retrocesso.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

Sobre o autor:

Lorenzo Rolim da Silva é Engenheiro Agrônomo e presidente da LAIHA (Associação Latino-Americana de Cânhamo Industrial).