Fundadora da Expocannabis Uruguai: "governos passam, mas o povo fica. E o Brasil vai regular a maconha"

Em entrevista ao portal Sechat, a ativista Mercedes Ponce de León falou sobre a 6ª edição da feira que acontece em dezembro, neste ano com espaço exclusivo para cannabis medicinal e industrial. Ela também comentou o cenário brasileiro

Publicada em 25/10/2019

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Montevidéu recebe de 6 a 8 de dezembro a sexta edição da Expocannabis Uruguai, evento que surgiu com a legalização da maconha no país vizinho. Para divulgá-lo, a fundadora Mercedes Ponce de León esteve no Brasil na última semana, onde pode conhecer também um pouco do nosso cenário. Enquanto o Uruguai já começou legalizando o uso adulto há anos, aqui ainda discute a regulamentação medicinal. E essa separação, para Mercedes, deve ficar clara. É justamente isso que está sendo proposto na edição 2019 do evento.

"Em 2016, como não haviam indústrias, ficaram todos dividindo o mesmo espaço. Hoje o panorama é diferente, há muito mais empresas, e somos conscientes da necessidade de separar os mercados. Então será o mesmo evento com duas entradas independentes, num lado a Expocannabis clássica e noutro a Expocannabis medicinal e industrial", disse em entrevista ao portal Sechat.

Esta edição da Expocannabis disponibilizará oficinas e consultórios com médicos especialistas em cannabis medicinal para o público, com informações tanto em grupo quanto atendimento individualizado nos consultórios. O objetivo é informar o público, sem custo adicional ao dos ingressos da feira.

Além do consultório, no setor medicinal também acontecerá a Cannabis Conference com ciclos de palestras, fóruns e workshops liderados por oradores nacionais e estrangeiros.

Mas o debate sobre a proibição segue sendo a tônica do encontro. Em sua visita a São Paulo, Mercedes se atualizou sobre o processo tocado pela Anvisa e os projetos de lei em andamento na Câmara e no Senado Federal. Para ela, independentemente da posição do governo federal, que é contra o plantio e tem feito pressões nesse sentido, a cannabis será regulada aqui também.

"Mais importante do que qualquer governo é o povo. O povo é que vai fazer a mudança, a tendência mundial é a regulação. Os governos passam, o povo fica. O Brasil vai regular a cannabis, não sabemos quanto tempo vai passar, mais vai".

Para a ativista, ser contra a cannabis medicinal "não coincide, no mínimo, com nada que está sendo pesquisado no mundo sobre cannabis medicinal". Mercedes afirma que a proibição ainda persiste no mundo por primeiro razões "religiosas, sociais, morais, sem nenhuma base científica e segundo por questão econômica, porque ameaça muitas indústrias da medicina, têxtil, de biodiesel".

Ouça a entrevista (em espanhol) ou leia abaixo traduzida

A Expocannabis Uruguai, nesse ano, está dando uma atenção maior para o lado medicinal. Por que essa mudança? 

Estamos ampliando nosso espaço disponível, oferecendo às empresas do medicinal e industrial o seu próprio espaço. A Expocannabis Uruguai é uma plataforma de informação e articulação da indústria da cannabis de uma forma geral. Ela surge na raiz da regualação da cannabis no Uruguai, em 2014. E a regulação no Uruguai começou por causa de direitos humanos e o uso adulto, não o médico. Esse foi o início. Mas igualmente, o evento busca oferecer informação de qualidade também sobre os temas medicinais, industriais, políticas de drogas e cultivo, então temos essas cinco orientações, e todos os anos tratamos desses cinco temas.

A indústria começou a se desenvolver no Uruguai sobre o uso adulto, não médico. Mas a partir dos últimos dois anos o governo começou a entregar licenças de produção de cânhamo e cannabis medicinal. E agora a indústria está avançando. Todos esses avanços nos deram a oportunidade de ampliar o setor, é uma necessidade que nós, como produtores do evento, vimos. As empresas medicinais estão levando a bandeiras da regulação, como no Brasil, mas para ouvirem suas vozes, precisam se distanciar do uso recreativo, justamente por causa do estigma social sobre essa temática. 

Em 2016, como não haviam indústrias, ficaram todos dividindo o mesmo espaço (recreativo e industrial). Hoje o panorama é diferente, há muito mais empresas, e somos conscientes da necessidade de separar os mercados. Por isso, neste ano, o evento troca de local, com muito mais espaço. Então são será o mesmo evento com duas entradas independentes, num lado a Expocannabis clássica e noutro a Expocannabis medicinal e industrial.

No Brasil, os defensores da proibição argumentam que, após a legalização, a violência aumentou no Uruguai? O que realmente está acontecendo aí?

Isso não é verdade e não há indícios de que o aumento de violência esteja vinculado à regulação da cannabis. É absolutamente falso. Não tem nenhuma base científica nem teórica que justifique. Existe um grupo de investigação no Uruguai, chamado Monitor Cannabis, que não está trabalhando por falta de recursos, mas que monitorou os primeiros cinco anos de legalização. Eles publicaram papers muito interessantes, que falam da importância da cannabis no Uruguai como uma alternativa pacífica ao fim do proibicionismo.

Aqui no Uruguai é legal consumir cannabis e todas as outras drogas. Então é nosso direito consumir cannabis, mas antes estávamos cometendo um crime para exercer nosso direito. Se criminalizava os usuários e a juventude do Uruguai. Com as vias legais de acesso, o governo mostrou que pacificamente se pode, porque o consumo de substâncias sempre existiu há milênios.

Mas desde que começaram a guerra às drogas, as drogas estão cada vez mais acessíveis, a preços mais baratos e em pior qualidade. E o narcotráfico traça suas ações vinculadas a corrupção e a violência. Mas os criminalizados são apenas os pobres. E os que chefiam o narcotráfico são pessoas de alto poder aquisitivo. A regulação da cannabis busca quebrar esse poder do narcotráfico.

Então, no Uruguai não aumentou a violência. Nenhuma regulação de cannabis vai parar a violência nos países. Porque estamos virando a chave para uma planta que não produz mortes, mas que é a moeda menos valiosa do mundo do narcotráfico. O narcotráfico opera com drogas pesadas, e obviamente com cannabis. Mas a representação econômica da cannabis é muito menor que das drogas pesadas. Ao tirar a cannabis do narcotráfico, não estávamos solucionando o problema da violência, mas vislumbrando uma saída pacífica a esse problema.

No Uruguai, se dizia que se regular a cannabis, vai aumentar a violência. Que os traficantes iriam sair às ruas e assaltar as senhoras que vão na farmácia comprar aspirina. O proibicionismo opera com a ignorância, com argumentos sem base científica. Já regulamos a cannabis e nenhum incidente de violência desse tipo aconteceu. Os incidentes de violência que aconteceram tem mais a ver com a atuação policial. Por mais que tenha mudado a lei, nos primeiros anos houve muita violência aos cultivadores por parte da polícia, a tal nível que se criou um protocolo de atuação policial sobre como atuar com esses cultivadores agora protegidos pela lei.

Por outro lado, aqui no Uruguai queria se regular apenas o auto cultivo porque se dizia que o estado oferecer seria algo horrível. Bem, são 7 mil cultivadores registrados, 3800 inscritos em mais de 600 clubes e 37 mil inscritos na farmácia. Então a via de acesso mais utilizada é a farmácia, porque o auto cultivo não cobre a demanda.

O governo não produz o suficiente e sempre libera novas licenças para abastecer as farmácias. Se multiplicarmos os auto cultivadores, os clubes e as pessoas que compram na farmácia, e multiplicar por 40 gramas mensais, que é o que podemos adquirir, estamos falando entre 1,5 toneladas a 2 toneladas consumidos ou com potencial de consumo. Não existe no Uruguai nenhuma operação policial contra o narcotráfico que tenha apreendida essa quantidade.

O governo brasileiro é contra a autorização do plantio de cannabis, mesmo que para fins medicinais e de pesquisa, e tem pressionado a nossa agência reguladora, a Anvisa, a não aprová-lo. Um ministro disse inclusive que “maconha medicinal não existe”. O que você diria ao nosso governo?

Que me mostrem uma pesquisa científica. Que seus argumentos tenham bases científicas para o que estão dizendo. Porque não coincidem, no mínimo, com nada que está sendo pesquisado no mundo sobre cannabis medicinal. Há cada vez mais países regulando, cada vez mais estudos que mostram os benefícios para doenças.

É importante ressaltar, é uma substância que requer cuidados, como muitas. Podemos controlar. Podemos conviver com substâncias perigosas e saber utilizá-las. Porque o problema não é a substância e sim o uso que fazemos delas. A cannabis tem diversas propriedades, para algumas doenças é muito boa, para outras não. O importante é acabarmos com o tabu e discutirmos com as famílias, com a sociedade, para fazer um bom uso dessas substâncias. Não há nenhuma morte registrada no mundo pelo uso de cannabis.

Por que ainda existem tantos preconceitos contra a maconha, mesmo com evidências científicas comprovadas de cura para várias doenças?

São muitas as razões, mas duas principais: econômicos e sociais. Para entendermos os motivos, temos que ir à raiz da proibição, que o estigma aos mexicanos nos Estados Unidos. Começou nos EUA essa guerra à marijuana, que é um termo que passou a ser usado no mundo proibicionista para criminalizar os mexicanos que chegavam aos EUA.

Mas também há outro motivo, porque cannabis é muito mais que maconha. Essa planta tem um poder muito maior que acender um baseado e ficar chapado. Isso é 5% de um oceano. A proibição de cannabis nos EUA também tem a ver com o cânhamo, que é um cultivo utilizado pela humanidade desde milênios, tem fibra para fazer papel, tela, casa, bioplástico, cosméticos, azeite, para comer, forragem para animais. Então é uma planta com muitas aplicações. 

As caravelas de Colombo, quando chegaram ao nosso continente, foi com barcos com velas de cânhamo, com cordas de cânhamo. A indústria da primeira e a segunda guerra mundial era com cânhamo, os papiros da China, a Constituição dos EUA, a primeira bandeira norte-americana, tudo foi feito de cânhamo.

É uma planta que competia diretamente com a indústria do algodão para indústria têxtil, mas com muito mais potencial e muito mais barata. Era uma concorrência muito grande para a indústria do algodão, que estava se desenvolvendo nos Estados Unidos com um grande potencial, e empresas pertenciam a famílias da elite, como a família Dupont, que tinha um grande influência política para incluir na proibição da drogas o cânhamo, que não tem nenhum princípio ativo.

E por isso se proibiu a cannabis como um todo. Então porque se segue reprimindo a cannabis a nível mundial? Razões religiosas, sociais, morais, sem nenhuma base científica e segundo por questão econômico, porque ameaça muitas indústrias da medicina, têxtil, de biodiesel.