Epilepsia atinge 60 milhões

Publicada em 04/07/2019

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Sechat publica agora o novo artigo do médico neurocirurgião Pedro Antônio Pierro Neto: 

A Epilepsia e o Canabidiol

Aspectos históricos

A epilepsia é uma das doenças mais antigas descritas pelo homem, podendo ser observada na maioria das espécies de mamíferos. Seu primeiro registro detalhado foi descoberto em um livro-texto babilônico, escrito por volta do ano de 2.000 a.C. O manuscrito traz em detalhes diferentes tipos de ataques convulsivos, como são descritos nos dias atuais, porém, enfatiza-se a natureza sobrenatural da epilepsia, associando cada tipo de ataque descrito a um espírito ou deus, normalmente de cunho perverso. Dado essa crença, nem é preciso mencionar que o tratamento seguia a mesma linha de caráter também espiritual.

Essa ideia que a crise convulsiva estava relacionada a interferências espirituais não era privilégio dos povos da mesopotâmia antiga, e pode ser encontrada em outros textos médicos das mais diversas regiões do globo terrestre, passando por diversos povos, como um Papiro cirúrgico de Edwin Smith (Egito antigo 1.700 a.C.), o Sakikku (Tabuas de pedras babilônicas 1.067 a.C.), o Avesta (texto Persa 600 a.C. – proíbe epilépticos de fazerem sacrifícios ou oferendas), entre outros.

Mais tarde, conceitos sobre a epilepsia também apareceram na Grécia antiga. Hipócrates, considerado o pai da medicina, escreveu uma monografia sobre a doença no ano 400 a.C., direcionada para leigos, onde relatou que a doença não tinha nada de sagrado, divino ou maldição e sim um distúrbio cerebral, com a suspeita de que sua origem fosse hereditária. À época ainda se acreditava que a doença estava relacionada a aspecto místicos. Já em 175 d.C. Galeno não somente reconheceu que se tratava de uma doença do cérebro, mas conseguiu inclusive separar as epilepsias em dois tipos: as de causas desconhecidas e as que eram sintomas de outras doenças, porém, pouca coisa mudou no pensamento e no preconceito sobre a doença que ainda existia.

Na idade média, muitas foram as perseguições da Santa Inquisição em pacientes com doenças mentais ou epilépticos, sendo candidatos para as fogueiras da época. É de se considerar que até essa época os mecanismos da doença eram desconhecidos pela medicina ocidental, enquanto no oriente, livre de dogmas religiosos nas escolas médicas, encontra-se descrito, em 1464, a utilização de haxixe para o tratamento da epilepsia.

Conceitos opostos às explicações sobrenaturais e demoníacas da doença surgiram no século XVIII, mas pouca coisa mudou com relação ao tratamento ao preconceito sobre as pessoas portadoras da doença, ainda reflexo do estigma vindo de milênios passados. No século XIX foram feitos diversos avanços nas ciências biológicas sob a marca do positivismo e de estudos médicos cada vez mais consistentes, combatendo cada vez mais a ideia dos caráteres espirituais em relação a epilepsia, porém a doença passou a ser vista como psiquiátrica, o que reforçou o estigma sofrido pelos portadores.

Hoje, embora o conhecimento sobre a doença tenha alcançado um entendimento mais detalhado, ainda existe muito preconceito com seus portadores.

Conceito

O termo “epilepsia” derivou do verbo grego epilambanein, que significa “tomar posse” ou “atacar”, que como vimos anteriormente, fazia sentido quando se pensava no caráter espiritual em que espíritos ou deuses pareciam realmente atacar as pessoas que sofrem da doença, em seus momentos de crise.

Hoje uma das definições para epilepsia mais aceita é: “Epilepsia é a designação genérica de uma série de afecções nervosas, de diversas etiologias, e que tem em comum um sintoma característico e frequente: crises convulsivas mais ou menos generalizadas”. Esta desordem neurológica grave afeta cerca de 60 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que, desses, 1/3 é refratário, ou seja, não terá suas crises controladas apesar do uso de pelo menos dois fármacos, ainda que em dose plena, seja em monoterapia ou em combinação.

Epilepsia e a Cannabis

A utilização de medicamentos oriundos da planta cannabis para tratamento preventivo ou para intervenção nas crises não é uma novidade no mundo. Como já mencionado acima, seu primeiro uso descrito foi em 1464, pelo médico Ibn al Badri que a utilizou para o tratamento de crises convulsivas do filho de um importante funcionário do califado de Bagdá.

Em 1843 o médico irlandês William Brook O’Shaughnessy, trata em Londres, uma criança indiana de 43 dias de vida com crises convulsivas refratárias. O resultado foi descrito no periódico médico “Provincial Medical Journal”.

Outra série com 22 casos foi descrita em 1859 pelo médico inglês J.R.Reynolds.

Na década de 80 uma parceria entre a universidade hebraica de Jerusalém e a Universidade Federal de São Paulo realizou o primeiro estudo com rigor cientifico sobre a utilização de canabidiol no tratamento preventivo da epilepsia. O estudo contou com 15 pacientes, divididos em dois grupos. A um dos grupos seria fornecido um óleo com canabidiol, enquanto o outro seria apenas com óleo sem o príncipio ativo do cannabis. Para minimizar o efeito placebo (efeito ocorrido por uma substância sem propriedades farmacológicas), nem o médico e nem os pacientes sabiam qual óleo estavam tomando. O resultado foi muito animador: dos 8 pacientes que utilizaram a medicação por 8 semanas, 4 ficaram totalmente sem crises, 3 apresentaram redução significativa de suas crises e somente 1 não obteve melhora. No grupo placebo, 1 paciente apresentou uma pequena redução das crises. Embora os resultados tenham sido acima das expectativas, levou muitos anos para que outros estudos fossem realizados.

Apesar do avanço lento do  tema no Brasil, em 2012 a história de uma garota americana chamada Charlotte Figi ganhou repercussão. Charlotte teve uma incrível melhora no controle das crises epiléticas utilizando um óleo a base de cannabis e sua história acabou virando um documentário. O sucesso do caso da garota americana rompeu as fronteiras dos EUA e motivou pessoas do mundo inteiro a procurar uma nova alternativa de tratamento, que garantia resultados nos casos em que os remédios já não conseguiam mais surtir efeito no controle das crises epiléticas, como aqueles 1/3 refratários já mencionados acima. A história dessa repercussão aqui no Brasil também virou um documentário, chamado Ilegal, do cineasta Tarso Araújo, que conta a história de mães lutando pelo direito de usar o produto no país, até então proibido, e como o óleo a base do canabidiol mudou a vida delas e dos filhos.

Além dos casos apresentados do documentário do Tarso, existem muitos outros pacientes que tiveram uma nova vida com a medicação a base canabidiol aqui no Brasil. Em meu consultório trato pacientes a base de canabidiol há mais de 4 anos. Crianças, adultos e idosos, mas o que me comove é quando as mães entraram na minha sala, com olhar cansado de ver o filho sofrer com as convulsões. Nos casos das epilepsias refratárias os resultados são surpreendentes. O tratamento leva um tempo, as doses são personalizadas e necessita de acompanhamento médico constante até atingir o resultado terapêutico desejado.

Conclusão

Observando a história da epilepsia e da utilização da medicação à base de canabidiol, encontramos em comum o preconceito e a discriminação. A utilização do óleo com canabidiol não é um milagre e assim como os medicamentos disponíveis no mercado também não irá funcionar em alguns casos, eventualmente, também pode apresentar efeitos colaterais. Mas onde a medicina tradicional já não surte efeito e há a indicação para tal, esse valioso recurso médico pode e deverá ser usado para aliviar o sofrimento de uma doença que pode ser totalmente incapacitante. Por trás de um produto como esse, existem estudos científicos sérios, feitos há décadas por cientistas e universidades renomadas, além de médicos competentes e treinados para prescrever e acompanhar cada caso. Não se discute qualidade de vida e por isso não é possível deixarmos que o preconceito ou a falta de informação norteiem as nossas escolhas ou daqueles que amamos.

Quando falo sobre “esse comum preconceito e discriminação da Cannabis” penso que existe muita gente endurecida, engessada por acreditar que um remédio produzido a base da maconha possa fazer tão bem as pessoas. No nosso convívio social mesmo podemos observar quando falamos sobre esse assunto, muitas pessoas questionam: “nossa, como vou dar um remédio a base de uma “droga” para o meu filho, para minha mãe ou para o meu pai?”. Esse preconceito está enraizado na cultura dos brasileiros, porque desde muito cedo aprendemos que a maconha é droga, que faz mal, que dita muitos comportamentos ruins no submundo de seus usuários etc. Mas dificilmente vemos famílias discutindo sobre drogas de forma não preconceituosa, educativa. É preciso desmistificar a maconha primeiro, entender os malefícios e benefícios da planta, porque é uma planta, um vegetal natural que pode ser bom ou ruim, conforme a utilização que você dá para ela.

Hoje com a informação na ponta dos dedos, antes de se posicionar sobre a Cannabis, a maconha ou o nome que você quiser dar, pesquise em sites (de origem fidedigna), forme sua livre opinião e vá em frente. Uma pessoa do bem, esclarecida e impregnada de amor pode ajudar a construir um mundo melhor!

Pedro Antônio Pierro Neto

Formado em Medicina e Residência em Neurocirurgia Funcional, se dedicou ao segmento de dor e ao método canibidiol cujo qual hoje é um dos primeiros médicos a prescrever no Brasil. Sua formação expandiu suas especializações nas terapias cirúrgicas para dor, tratamento de movimentos e cirurgias psiquiátricas. Se formou em 2000 e hoje a abordagem é centrada no método cannabis medicinal. Dr. Pedro Pierro é Membro da Sociedade Neurocirurgia, Sociedade Brasileira para estudo da Dor (SBED) e Inter-Americana de Cirurgia de Coluna Minimamente Invasiva.