"Em 2019, a bolha da indústria de Cannabis arrebentou: que bom que isso aconteceu"

"Foi essa indústria de base especulativa e sem eficiência operacional que arrebentou a bolha", afirma o CEO da Piauhy ao portal Sechat; para o executivo, só com investimento em pesquisa será possível sobreviver nesse mercado

Publicada em 18/12/2019

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Artigo escrito para o portal Sechat por Eduardo Sampaio, empresário brasileiro e CEO da Piauhy, empresa de Cannabis medicinal com operações no Uruguai e em Portugal

Indústria recente da cannabis, uma estória em quatro atos: tulipas, bolhas, fumaça e weed

A indústria de Cannabis foi durante muito tempo um sonho impedido pela realidade legal. Avanços recentes na legislação de países como Uruguai, Israel, Canadá, Austrália, EUA, Alemanha, Portugal, Colômbia e outros estão mudando este panorama, abrindo incríveis oportunidades de pesquisa e desenvolvimento com um comércio legítimo e regulado. Este avanço cresce todos os anos, com cada vez mais países criando legislações abrangentes e reconhecendo o potencial terapêutico de fármacos elaborados a partir de produtos derivados de plantas do gênero Cannabis.

O Brasil entrou neste grupo de países que permite o desenvolvimento de uma indústria de Cannabis medicinal, após a recente decisão da ANVISA que regulamenta o setor.

Além de usos medicinais, a Cannabis é usada diariamente por milhares de pessoas para uso recreacional, tanto fumada, vaporizada e como produtos comestíveis (edibles e drinks). A indústria de CBD (canabidiol, uma das centenas de substâncias encontradas na planta) para cosméticos e bem-estar (wellness) representa o terceiro uso mais comum de produtos canábicos, e o que teve seu maior crescimento nos últimos anos. E finalmente há outras indústrias como a têxtil (a mais antiga), material de construção (hempcrete) e produtos veterinários.

Nos últimos quatro anos, houve um crescimento extraordinário na indústria de Cannabis. Embora o Uruguai tenha sido o primeiro país a legalizar os usos recreacional e medicinal em 2013 com o presidente José Mujica, o crescimento explosivo da indústria se deu na esteira das medidas de abertura e regulamentação levadas a cabo no Canadá, pelo primeiro-ministro Justin Trudeau. Este crescimento sem precedentes levou algumas pessoas a considerar este crescimento exagerado, "uma bolha especulativa". 

Neste ano de 2019 a bolha arrebentou. E que bom que isto aconteceu.

Frequentemente utilizada como conto preventivo, a história da bolha holandesa em 1637 relata que a loucura por novas formas de tulipas chegou a tal nível que bulbos de tulipa vendiam mais caro que uma mansão, até que um marinheiro foi aprisionado por ter acidentalmente comido um desses. Na verdade, dados recentes sugerem que estas são apenas estórias fabricadas, e que a bolha da tulipa não foi assim tão extraordinária. O termo "bolha das tulipas" agora é frequentemente usado metaforicamente para se referir a qualquer grande bolha econômica quando os preços dos ativos se desviam dos valores intrínsecos.

Este é o aviso que foi repetidamente feito à indústria de Cannabis.

Apesar da bolha holandesa ser mais mito que fato, outras bolhas podem ser usadas como aviso da rápida expansão e investimentos precipitados. Um exemplo clássico é o da bolha dotcom, ou a bolha da internet, em que investidores compravam ações indiscriminadamente em empresas que tivessem “.com” no nome, mesmo que estas ainda estivessem finalizando seus produtos. Isso levou a um crescimento impossível de acompanhar pelas empresas tradicionais de bens e serviços e, subsequentemente, a um pânico generalizado quando os grandes nomes começaram a vender em massa as suas ações no período 2000-2002.

Outro exemplo comumente referenciado é a bolha imobiliária dos Estados Unidos, housing bubble ou real estate bubble, propiciada por crédito fácil e barato, uma alta procura de casas e baixa provisão de espaços para arrendar ou vender. Este processo foi cumulativamente engendrado com artifícios financeiros que retiravam o risco de crédito dos bancos inicialmente envolvidos nos contratos imobiliários. A certa altura a procura diminui em simultâneo com o aumento de oferta causados pelos investimentos anteriores o que levou ao “arrebentar da bolha”.

Estes exemplos pintam uma estória assustadora e previsível, com todos os elementos aplicáveis ao grande boom do mercado de Cannabis. Essa indústria de base especulativa e sem eficiência operacional arrebentou a bolha, visível no histórico de ações e o fato de grandes empresas terem lucros negativos cada vez mais elevados, na ordem dos bilhões de dólares.

As promessas destas grandes empresas de um crescimento ordenado e lucratividade crescente viraram fumaça.

Facilitados por investidores pouco esclarecidos dos riscos intrínsecos e por fácil acesso ao capital (IPOs) estas empresas se lançaram em processos descontrolados de crescimento de produção e expansão em novos mercados internacionais, ou interestadual no que ficou conhecido nos EUA como MSO, multi state operators.

Esta situação é ainda mais exacerbada por regulamentos complicados e distintos, sendo necessário um pelotão de advogados e especialistas para navegar. Nos EUA, por exemplo, os vários estados têm as suas próprias leis, não só relativamente à legalidade de substâncias cnnábicas, mas também aos processos pelos quais estes produtos são fabricados e vendidos. Isto significa que uma empresa que queira atuar em vários estados necessita entender regulamentos especializados para cada um além das questões de distribuição, marketing etc. Empresas que queiram operar a nível internacional são confrontadas com o mesmo problema.

O Canadá foi o primeiro grande país e primeiro membro da OECD a regulamentar os mercados medicinal e recreacional de maconha. E também foi o primeiro a desenvolver as primeiras empresas bilionárias do setor, tais como Aurora, Canopy, Tilray, Cronos e Aphria. E, apesar de não haver ainda uma lei federal nos EUA, uma das maiores empresas interestaduais, MSOs, é a Accreage Holdings.

Todas tiveram crescimento extraordinário no período 2017-2018 e financiaram este crescimento transnacional com um misto de alto endividamento, uso de ações em processos de compras e promessas de retornos espetaculares aos seus investidores. O ano de 2019 assistiu a estas promessas tornarem-se “fumaça”. O gráfico a seguir resume o declínio no valor destas ações no acumulado do ano.

Fonte: Yahoo Finance

Perda do valor de ações no acumulado do ano:

Canopy: - 35%
Aurora: - 54%
Accreage: - 78%
Tilray: - 75%
Aphria: - 27%
Cronos: - 46%

Parte da razão para este declínio é atribuída à continuada existência do mercado negro, que apesar da legalização não diminuiu. Na verdade, este mercado continua a crescer, e estima-se que até 71% das vendas totais de cannabis no Canadá em 2019 sejam no mercado ilegal.

Isto acontece provavelmente devido à diferença de preço: maconha legal é altamente regulada e taxada, o que eleva o preço para o consumidor. Dealers, vendedores ilegais, não pagam impostos no produto e como tal, conseguem preços que chegam a ser metade do dos vendedores legítimos ($5.59 vs. $10.23, segundo Statistics Canada).

Esta diferença de preço faz com que utilizadores de longa data estejam relutantes em converter para fornecimento legal de produtos de Cannabis. 

Produção sustentável, de alta-qualidade e de preço baixo é a arma mais eficaz que a indústria pode desenvolver

Estará então a indústria de Cannabis condenada? Tal como uma erva daninha, weed, esta indústria adapta-se aos problemas que lhe caem em cima, e renasce mais forte. Novos empreendedores, com extenso conhecimento do passado e das várias barreiras à implementação estão a surgir. Armados com este conhecimento estes novos jogadores estão a oferecer alternativas no mercado, providenciado produtos apoiados pela ciência. 

Uma empresa que continua a crescer e oferecer novos produtos nos EUA é a Flower One, considerada líder no mercado de plantação, produção e inovação de Cannabis no estado do Nevada. Outro bom exemplo de empresa neste setor é a MediPharm que focou seus esforços nos processos de extração e desenvolvimento de produtos canábicos e não em seu cultivo. E ainda a "queridinha" dos investidores, Ease, especializada em distribuição.

O aumento de interesse na pesquisa é fundamental para as empresas de Cannabis medicinal que sobreviverão. Novos processos e novos produtos, de alta qualidade e confiabilidade trarão uma vantagem de confiança junto aos pacientes. 

O desenvolvimento desses processos levará à redução de custos de produção e produtos muito mais eficazes para as diversas enfermidades. Estes fenômenos aumentarão as vendas legais e reduzirão o custo para o consumidor concorrente com o mercado ilegal.

É também necessário mencionar outros mercados além do americano e canadense. Startups de Cannabis estão surgindo pelo mundo afora, seguindo legislações novas que permitem o estudo e a venda de produtos fitocanábicos.

Estas empresas vêm armadas de conhecimento técnico e histórico, e reconhecem o perigo de um investimento descontrolado. A bolha da Cannabis pode ter arrebentado, mas tal como em outros mercados em que isso aconteceu, isso permitiu o desenvolvimento de um mercado mais robusto e regulado. Estas novas empresa florescerão e continuarão a revolução de mais e melhores produtos para uso medicinal e recreacional.

Hoje é o melhor momento para se empreender em cannabis medicinal

O ruído gerado pelas grandes empresas de Cannabis, com seus processos especulativos, péssima gestão, destruição de valor aos acionistas e desastrosa alocação de capital chegou ao fim. Lamento pelos investidores que acreditaram nestas “bolhas” e nestas estórias de tulipa. Abundam nos EUA neste momento ações legais contra muitas destas empresas pelos desvios e prejuízos causados.