Efeitos secundários da cannabis: ônus ou bônus?

Em mais um texto repleto de exemplos da prática clínica, o colunista Ricardo Ferreira propõe uma reflexão muito oportuna sobre a necessidade dos pacientes, revelando a confusão entre o que são efeitos colaterais e efeitos negativos de determinado tra

Publicada em 28/01/2021

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Coluna de Ricardo Ferreira*

Todo mundo sabe que um médico cuidadoso sempre deve ponderar sobre os potenciais efeitos positivos e negativos antes de prescrever qualquer medicamento para seu paciente. E este cuidado deve ser redobrado quando o medicamento em questão atua sobre o sistema nervoso central, seja este medicamento um antidepressivo, analgésico opioide, ou mesmo medicamentos derivados da cannabis. 

Na farmacologia, entendemos como efeitos positivos aqueles que de alguma forma conseguem melhorar a situação do paciente. Seja através do alívio dos sintomas ou, quando possível, interrupção do processo que leva à doença. De forma oposta, chamamos de efeitos negativos ou adversos aqueles que por algum motivo despertam algo desagradável ou potencialmente danoso ao paciente.

Usualmente existe uma tremenda confusão entre efeitos colaterais e efeitos negativos. Isso porque normalmente tendemos a achar que todos os efeitos colaterais são invariavelmente negativos; mas isso nem sempre é verdade.

Em muitas situações, os efeitos colaterais podem ser mais importantes do que os próprios efeitos principais. Como a cannabis é composta por um espectro variável de princípios ativos, os efeitos colaterais tendem a ser ainda mais relevantes.

Usualmente existe uma tremenda confusão entre efeitos colaterais e efeitos negativos. Isso porque normalmente tendemos a achar que todos os efeitos colaterais são invariavelmente negativos; mas isso nem sempre é verdade.

Quando um paciente utiliza a cannabis como medicamento ele normalmente foca em um determinado sintoma. Podendo ter como meta o controle da dor, redução da ansiedade, evitar espasmos e por aí vai… Invariavelmente seu objetivo principal precisa ser alcançado para ele se sentir satisfeito. Entretanto, na maioria das vezes o que vemos na prática é que apenas alcançar este objetivo não costuma ser o bastante. 

Já faz tempo que a medicina deixou de focar apenas na cura das doenças. Esta mudança se deu pela valorização do ganho de qualidade de vida; que é um conceito altamente subjetivo, mas que sem dúvida vai muito além da simples ausência de sintomas.

Para a grande maioria dos pacientes, por exemplo, não adianta conseguir diminuir a intensidade da dor se o medicamento utilizado impossibilitar de fazer as atividades cotidianas. Sejam estas atividades afazeres domésticos, estudo, trabalho, capacidade de guiar veículos e por aí vai. 

Então, se a redução daquela dor crônica, por mais intensa que ela for, significar ter que ficar o dia todo colado no sofá, dormindo, ou chapadão viajando na maionese, mais cedo ou mais tarde o paciente terá que se questionar se isso realmente é uma boa opção a médio e longo prazo. 

De forma bem direta, a percepção de sucesso de um determinado tratamento está diretamente ligada a melhora da qualidade de vida como um todo. E isso inclui não apenas a redução da gravidade dos sintomas mas também reabilitação para realização das atividades do dia a dia, aumento da independência, melhora do humor e da performance para as demandas pessoais, familiares, sociais e profissionais.

De forma bem direta, a percepção de sucesso de um determinado tratamento está diretamente ligada a melhora da qualidade de vida como um todo. E isso inclui não apenas a redução da gravidade dos sintomas mas também reabilitação para realização das atividades do dia a dia, aumento da independência, melhora do humor e da performance para as demandas pessoais, familiares, sociais e profissionais.

Sabemos que dependendo da dose, características individuais, modo de uso e composição química (quantidade e proporção de canabinoides e terpenos), a utilização de medicamentos à base de cannabis tem o poder de provocar efeitos diferentes. E o caminho do sucesso é conseguir encontrar o equilíbrio. E este é o ponto! 

Na prática vejo muitos pacientes que preferem fazer o uso de quantidades maiores de THC  no período noturno. Muitos deles me relatam que os efeitos psicoativos são facilmente administráveis a noite, e que o uso noturno proporciona que o dia seguinte seja menos duro. 

Por outro lado, infelizmente, existem situações em que o conhecimento médico é que as ferramentas disponíveis não são capazes de combater ou minimizar algum sintoma ou doença. Em medicina isso recebe o trágico rótulo de fora de possibilidade terapêutica (FPT). 

E para alguns pacientes rotulados como FTP o foco da assistência médica deixa de ser na doença em si, e passa a ser a melhoria geral das condições de existência; ou seja, minimizar o sofrimento.  

Assim, nestas situações os efeitos colaterais podem ganhar status de protagonista.

Por exemplo, muitos pacientes que utilizam cannabis com THC como canabinoide dominante sentem muita fome, na verdade não é bem fome, mas sim a perda da sensação de saciedade após comer, a famosa larica sem fim.

Para uns este fenômeno agrava a ansiedade e é impossível de ser controlado, que leva a comer de forma desenfreada e suas óbvias consequências.

Mas imagine esta mesma vontade de comer de tudo em quem além de algum sintoma principal também esteja sofrendo com aversão à comida… Nesta situação, a compulsão alimentar pode ser extremamente bem-vinda. E isto é o que vemos em pacientes com diversas doenças neurológicas, e em cuidados de fim de vida para doenças graves como o câncer.

Outro exemplo também ocorre em relação aos efeitos psicoativos da cannabis. Alguns pacientes portadores de doenças consideradas intratáveis, não necessariamente potencialmente fatais, estão em uma espiral tão grande e a tanto tempo de sofrimento, que os efeitos psicoativos da cannabis distorcendo as sensações, sentimentos e percepções da realidade podem transformar o seu martírio diário em algo pelo menos mais fácil de suportar.

Na língua inglesa se usa a palavra “impairment” para avaliar o nível de comprometimento da capacidade de realização das atividades cotidianas sob influência de alguma substância. Ou seja, dificuldades para trabalhar, estudar, dirigir, cuidar das coisas ao seu redor e fazer o que precisa ser feito. Ainda não consegui achar uma palavra no nosso português com ideia similar, mas o conceito é esse.

É inquestionável que medicamentos à base de cannabis, principalmente aqueles com maiores quantidades de canabinoides de ação psicoativa, podem causar perturbações na capacidade de realizar atividades do dia a dia. Entretanto, na maior parte das vezes é possível encontrar o equilíbrio entre o potencial comprometimento funcional e a melhoria dos sintomas.

É inquestionável que medicamentos à base de cannabis, principalmente aqueles com maiores quantidades de canabinoides de ação psicoativa, podem causar perturbações na capacidade de realizar atividades do dia a dia. Entretanto, na maior parte das vezes é possível encontrar o equilíbrio entre o potencial comprometimento funcional e a melhoria dos sintomas.

Mas também não podemos esquecer que existem situações tão dramáticas que a dissociação da realidade provocada pela Cannabis pode trazer grande alívio a pessoas presas a rotinas de extremo sofrimento. 

Na maioria dos casos não existe certo ou errado, mas creio que o acompanhamento individualizado, astuto e focado na resposta capaz de fazer o ajuste de dose encontrar os canabinoides e terpenos para cada paciente.

Por conta de tantas variáveis, quem já tem alguma experiência no acompanhamento de pacientes que utilizam a cannabis como medicamento tendem a perceber rapidamente que o ônus para uns pode ser o bônus para outros.  

*Ricardo Ferreira é médico especialista no tratamento de doenças da coluna vertebral e controle da dor e colunista do Sechat.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

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