Dermatologia e cannabis, entenda a relação

Em entrevista exclusiva, o dermatologista Dr. Guilherme Marques, responde algumas questões sobre a relação entre a terapia canábica e a pele

Publicada em 13/12/2021

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Por João R. Negromonte

Buscando entender melhor a relação entre os compostos da cannabis e os cuidados com a nossa pele, o Sechat entrevistou o Dr. Guilherme Marques, graduado em medicina pela Faculdade do ABC (FMABC), especialista em Dermatologia pela BWS Núcleo de Ensino - Associação Pele Saudável (APS) e um dos médicos residentes do Centro de Excelência Canabinoide (CEC), que relata algumas de suas experiências e nos ajuda entender um pouco mais sobre essa nova alternativa de tratamento.

Confira a entrevista

Dr. Guilherme Marques (CRM-SP: 198.679). Foto: Arquivo pessoal

Qual o paralelo entre a terapia com canabinoides e a dermatologia?

Como bem sabemos, o Sistema Endocanabinóide está presente em múltiplos locais do nosso corpo e também é responsável por modular outros sistemas e suas reações físico-químicas, garantindo um papel importantíssimo na manutenção do equilíbrio desses sistemas e – por consequência - do nosso organismo como um todo.

Na nossa pele não poderia ser diferente: temos receptores que respondem aos endocanabinóides (os canabinóides que nosso próprio corpo produz: anandamida e 2- araquidonilglicerol) bem como aos fitocanabinoides (CBD, THC, CBN. CBG, entre outros). Por meio desses receptores, podemos ter um efeito inibitório ou atenuante da inflamação cutânea, proliferação celular (capacidade da pele se dividir além do normal), fibrose (substituição do tecido vivo por um tecido morto, como a cicatriz), sensação de dor e também da coceira (tecnicamente chamada de prurido) – controlando sintomas e tratando doenças que seguem esses padrões.

Quais seriam essas doenças e qual o potencial do CBD nelas?

O CBD está sendo muito discutido e testado no tratamento de Acne, Dermatite de contato, distúrbios do crescimento capilar (alopecias), psoríase.

Mas temos também algumas outras condições em que o uso da terapia canabinoide via oral e via tópica (pomadas, cremes e afins) está consagrando-se com evidências científicas concretas. É o caso do prurido que esta presente isoladamente (distúrbios neurológicos, distúrbios
psiquiátricos ou mesmo secura da pele), em doenças de pele (eczema atópico/dermatite atópica e dermatite de contato alérgica) ou mesmo em doenças sistêmicas que cursam com prurido ou coceira associada (insuficiência hepática, insuficiência renal, doenças autoimunes).
No caso do prurido, por meio de alguns estudos clínicos, provou-se que medicações que estimulavam os receptores canabinoides (sintéticos) diminuíam a coceira, enquanto medicações que bloqueavam esses mesmos receptores aumentavam a coceira.

A sensação de dor (seja na pele ou em outros locais) também faz um paralelo gigantesco com o sistema endocanabinoide e sua regulação.

O que é Modulação Neuro-Imuno-Endócrina?

São interações entre os sistemas nervoso, imunológico e endócrino (atuação de hormônios, especialmente). É uma visão mais realista e inteligente de olhar adaptações orgânicas a desafios endógenos (estímulos proporcionados pelo próprio organismo) e exógenas (estimulos “de fora” do organismo) de um modo integrado, onde cada uma das partes evoluiu para
concretizar uma função especializada – sem separar sistemas como se fossem independentes e isolados cada qual em seu espaço limitado.

Creio que esta premissa seja excelente para, igualmente, entendermos o sistema endocanabinoide e sua atuação no equilíbrio do nosso organismo (que, em linguagem técnica chamamos de homeostase). Provavelmente este é o ponto de atuação dos medicamentos à base de CBD e outros fitocanabinóides (THC, CBN, CBG, entre outros). Sempre bom salientar
que Terpenos e compostos valinóides estão igualmente presentes na planta e tem um papel importante nesse contexto.

Quando pensamos em dermatologia, logo imaginamos a beleza e estética. A cannabis
medicinal pode ser usado para este fim?

A dermatologia também cuida da estética e há um paralelo grande das funções dos fitocanabinóides com a beleza e o processo de envelhecimento.

O CBD é sabidamente capaz de promover alivio de irritações e a redução da vermelhidão da pele (chamamos de eritema), além de possuir ação antioxidante, regeneradora, hidratante e anti-inflamatória. Visto isso, parece razoável dizer há um potencial magnífico de atuar em alguns pontos do processo de envelhecimento também, especialmente por sua função antioxidante.

Manchas de pele que se deram por um histórico inflamatório prévio (chamado de hipercromia pós-inflamatória) é uma condição que podemos evitar com esses mesmos produtos.

Dentro do estudo dos cabelos, temos uma aposta dos ativos canábicos em sua atividade anti-inflamatória em doenças do couro cabeludo que contam com essa ação (alopecias, por exemplo). Inclusive, já temos linhas de tratamento no mercado cosmético internacional que promete cuidados desta ordem.

Já existe algum medicamento no mercado ou só produtos artesanais?

Temos produtos artesanais sim mas cabe alertar que eles não passam por um controle de qualidade digno e pode gerar riscos à saúde. Por exemplo: sempre que colocamos algum ativo (produto com a capacidade terapêutica) em uma formulação, temos que nos preocupar com parâmetros como a conservação do ativo e suas propriedades, o tempo que ele terá de atuação, o veículo em que ele se insere que garanta sua ação, em qual forma ele será
manipulado (creme, pomada, loção, gel, por exemplo), concentração, entre muitos outros.

Visto isso, há órgãos que garantem este controle de qualidade para harmonizar o que se promete e o que se cumpre. Para tanto, indico fortemente que repensem o uso de produtos artesanais de origem duvidosa e sem controle de qualidade.

Quanto a indústria cosmética, temos marcas consagradas há décadas no mercado que estão se atrevendo a compor o CBD e outros análogos em suas formulações. A primeira que lançou um produto a base de ativos destilados da Cannabis Sativa foi a britânica The Body Shop em 1998, com a linha Hemp Hand Protector com seu hidratante para mãos.

Entre outras grandes marcas, temos a Kiehl’s (da L’Oreal), Tresemmé (Unilever) e a Avon (Natura) com seu sérum facial Green Goddes. No setor da cosmética de luxo, a americana Barneys inaugurou em 2019 a The High End, uma linha de cosméticos a base de CBD.

Creio que, no Brasil, em breve teremos regulamentações que permitirão ao médico prescrever formulações em farmácias de manipulação a base de ativos fitocanábicos. Um exemplo recente foi o laboratório paranaense Prati-Donaduzzi que foi autorizado a produzir o extrato de canabidiol que é vendido em farmácias (desde que tenha indicação médica e em receituário
tipo B - azul)

Todos os canabinoides são utilizáveis na dermatologia?

Atualmente os estudos científicos se concentram no CBD. Entretanto, sabemos que na terapia sistêmica (aquela que tomamos para atuar no corpo todo), o THC age com certo sinergismo ao CBD, potencializando sua ação. Além disso, o CBD também é capaz de atenuar a atividade psicoativa do THC, efeito este que causa muitas incertezas (entenda-se preconceitos) sobre sua presença nos cosméticos e mesmo nos tratamentos sistêmicos. Para todos os fins, é aprovado que se tenha uma concentração inferior a 0,3% de THC no produto (seja ele tópico ou de uso interno).

Infelizmente, o impasse para termos outros ativos canabinoides na composição de produtos cosméticos esbarra na regulamentação de cada país. Por exemplo, na França é proibido que o produto tenha THC e, uma vez que destilamos o CBD da planta, dificilmente nos livraremos por
completo do THC e outros compostos. Em outros países, é proibido extrair qualquer substancia da flor (onde concentram mais ativos) porém não há regulamentação que impeça a extração do óleo da semente, sendo a “brecha” que marcas como a Kiehls (L’Oréal), Origins (Estée Lauder) e da Murad (Unilever) em suas linhas hemp.

Existem produtos que não são destilados da planta e tem ação no sistema endocanabinóide?

Sim! E esta é outra grande inovação para usufruirmos de efeitos análogos aos fitocanabinóides. Um exemplo brasileiro de ativo que tem uma função similar é o BCP (cariofileno ou beta-cariofileno), um sesquiterpeno bicíclico natural que esta presente no cravo-da-índia, alecrim, copaíba, lúpulo (lúpulo é um dos responsáveis pelo amargor da cerveja) e na pimenta-do-reino. Ele não tem efeito psicoativo como o THC e é legalizado. Suas funções vão deste anti-inflamatóris e antissépticas até antibiótica e cicatrizante.

Temos outra inovação que vale a pena citar: a Beraca (empresa que oferta insumos de cosméticos) diz que criou um composto que possui efeitos similares aos do CBD e patenteou a fórmula com o nome de CBA - abreviação para Cannabinoid Active System. Neste contexto, integrou a Lola Cosmetics como cliente que, por sua vez, produziu uma linha de tratamento
capilar a base de CBA. Segundo o produtor, o produto é composto por uma “fórmula rica em complexo probiótico e ação anti-inflamatória”, prometendo “devolver a saúde e vitalidade dos fios através de seus ativos naturais”. Além disso, proporciona uma “sensação de relaxamento, controla o frizz e auxilia na reparação tecidual, através de sua proteção antioxidante”.

O tratamento canábico é bom para acne também? Como funciona?

Antes de qualquer colocação, devemos entender a acne como uma doença multifatorial, ou seja, uma doença que se dá por meio de múltiplas causas: desregulação da produção de sebo na pele, desequilíbrio hormonal e propensão genética, além de outras condições que podem exacerbar os sintomas como alimentação, níveis elevados de estresse, medicações, entre
outros.

O CBD tem propriedades múltiplas neste cenário: atuam nos sebócitos (células que produzem o sebo da pele) controlando a seborreia, possuem propriedades anti-inflamatórias, propriedades antifúngicas e antibacterianas (especialmente quando temos uma quantidade
grande de poluentes e sujeira que impregna a pele).

Acredito que a associação de diferentes medicamentos seja um caminho promissor na escolha da melhor terapêutica. Atualmente temos produtos muito bem estabelecidos no mercado e acredito que os ativos canabinoides de uso tópico venham a somar – mas não a substituir as medicações vigentes.