Cannabis, Canabidiol e a Justiça

Em artigo para o portal Sechat, advogados Joao Manssur e Marcelo do Valle defendem que é obrigação, tanto do Estado, quanto dos planos de saúde fornecer medicamentos com CBD aos pacientes

Publicada em 17/12/2019

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Por Joao Manssur, advogado pós-graduado em Direito Empresarial e Especialista em Direito Penal Econômico, e Marcelo do Valle, advogado e Especialista em Direito Processual Civil, sócios da Manssur Advocacia, para o Portal Sechat.

O presente artigo tem o escopo de analisar e defender a regulamentação do uso terapêutico do Canabidiol (CBD), sob a ótica da Constituição Federal em seu artigo 196 que garante que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

O canabidiol, ou CBD, é um composto químico não psicoativo encontrado na planta Cannabis sativa, conhecida popularmente como maconha, que, de acordo com estudos científicos e relatos médicos pode ser utilizado no tratamento de doenças e sintomas, a saber: epilepsia, dores crônicas de origem oncológica ou neuropática, autismo, leucemia, espasticidade causada pela esclerose múltipla, náuseas e vômitos causados pela quimioterapia, inapetência, ansiedade, psicose, insônia, dores musculares, dependentes químicos, entre outros.

Mas há, ainda, por parte de alguns setores da sociedade certo preconceito, por se tratar de uma substância proveniente da maconha. Entretanto, maconha e o CBD (Canabidiol) são substâncias distintas. A substância psicoativa da planta é denominada THC (Tetraidrocanabinol).

Ocorre que os novos medicamentos e produtos à base de CBD possuem um índice de THC baixíssimo, de modo que não causam dependência e não há relatos de efeitos colaterais de ordem psicológica e cognitiva característicos do THC.

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução CFM Nº 2.113/2014, publicada no Diário Oficial da União de 16 de dezembro de 2014, seção I, p. 183, aprovou o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes resistentes aos tratamentos convencionais.

Entretanto, a grande burocracia e o altíssimo preço do medicamento acabaram tornando-o inacessível para a grande maioria dos pacientes. Como resultado, muitas famílias no Brasil ainda não conseguem importar e comprar o medicamento e terminam por adquiri-lo dentro de um mercado ilegal, que pode impactar na sua qualidade.

Não obstante, entendemos que é obrigação tanto do Estado quanto dos Planos de Saúde o fornecimento do referido medicamento.

Senão vejamos.

No tocante ao SUS, entre 2015 e 2018, quase triplicou o número de pessoas que entraram com ação contra o Ministério da Saúde solicitando o fornecimento do composto, segundo informações da pasta. Esse volume não inclui pacientes que movem ação contra as secretarias estaduais, o que indica que o número de brasileiros que vão à Justiça possa ser ainda muito maior.

Vale lembrar que o fornecimento de medicamento pelo Estado é previsto na Constituição Federal, em especial nos artigos 1º, inciso III ("a República Federativa do Brasil … tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana"), 5º, caput ("… garantindo-se aos brasileiros …. o direito à vida”) e inciso XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), 6º (“são direitos sociais a educação, a saúde, …") e 196 e seguintes.

Ainda, a lei que regulamenta o Sistema Único de Saúde SUS, qual seja a Lei nº 8.080/90, em seus arts. 2º e 6º, inciso I, “d”, estatui que:

"Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

“Art. 6º. Estão Incluídos ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde SUS:

I - A execução de ações: (…) d - de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica.”

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, no Recurso Especial nº 1.657.156/RJ (tema nº 106) já firmou entendimento no sentido de que é obrigação do Poder Público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os requisitos fixados neste julgado, a saber:

I - Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo
SUS;
II - Incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e III - Existência de registro na ANVISA do medicamento.

Em que pese a ausência de registro formal na ANVISA, tal requisito, a nosso ver, não constitui por si só óbice ao seu fornecimento, haja vista que este mesmo órgão já permite a importação de medicamentos controlados sem registro no país por pessoa física.

Especificamente em relação ao princípio ativo “Canabidiol”, é destacado que a ANVISA reclassificou a referida substância extraída da planta Cannabis deixando esta de constar da lista de substâncias proibidas para constar da lista de substâncias controladas, publicando, ainda, em 06/05/2015 a Resolução RDC nº 17, passando a permitir à importação em caráter de excepcionalidade de produto a base de “Cannabidiol” em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio,
mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para
tratamento de saúde.

A corroborar nossa tese, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem admitido seu fornecimento. Confira-se:

“Agravo de instrumento. IMASF. Assistência farmacológica. Medicamento à base de canabidiol. Existência de prova de que a ANVISA autorizou a importação do medicamento. Probabilidade do direito evidenciada à luz das informações existentes nos autos. Presença dos requisitos do art. 300 do CPC. Tutela de urgência ora deferida. Agravo de instrumento improvido.”
(TJSP; Agravo de Instrumento 2249664-55.2018.8.26.0000; Relator (a): Luis Fernando Camargo de Barros Vidal; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Público; Foro de São Bernardo
do Campo - 2ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 04/02/2019; Data de Registro: 08/02/2019).

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO PADRONIZADO. PURODIOL.
Decisão que concedeu a tutela de urgência. Comprovação da ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS para o tratamento das moléstias do impetrante. Irrelevância da ausência de registro na Anvisa. Autorização do órgão para a importação dos medicamentos à base de Canabidiol. Requisitos de concessão fixados no Tema 106 atendidos. Recurso não provido. Decisão mantida.”

(TJSP; Agravo de Instrumento 2222365-06.2018.8.26.0000; Relator (a): Heloísa Martins Mimessi; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Público; Foro de Pinhalzinho - Vara Única; Data do Julgamento: 17/12/2018; Data de Registro: 17/12/2018).

“Mandado de Segurança objetivando o fornecimento de medicamento. Pretensão admissível perante o ordenamento jurídico vigente. Preliminar rejeitada. MANDADO DE SEGURANÇA. Pretensão ao fornecimento do medicamento Hemp Oil (RHSO) Canabidiol Sativa. Necessidade comprovada Hipossuficiência financeira Obrigação do fornecimento pelo SUS. Art. 196 da CF. Segurança concedida. Recursos oficial e da FESP não providos.”
(TJSP; Apelação / Remessa Necessária 1014877- 43.2015.8.26.0602; Relator (a): Reinaldo Miluzzi; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro de Sorocaba - Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 27/09/2018;
Data de Registro: 27/09/2018).

Cabe destacar importante trecho do voto no Agravo de Instrumento 2222365-06.2018.8.26.0000, de Relatoria da Exma. Desembargadora Heloísa Martins Mimessi:

“Ademais, no caso em discussão, a ausência de registro do
medicamento na ANVISA deve ser relevada, a fim de se preservar a integridade física e psíquica do impetrante, uma vez demonstrada a necessidade de seu uso por ser o medicamento mais eficaz para inibir ou amenizar os efeitos causados pela patologia que o comete. Não bastasse, a substância em questão deixou de ser proibida e passou a ser controlada pela ANVISA a partir do ano 2015, que instituiu processo simplificado de importação de medicamentos à base de Canabidiol, nos termos da RDC nº 17/2015.”

A responsabilidade pelo fornecimento de medicamentos às pessoas tem sido aceita até mesmo quando não estão disponíveis em rede pública de saúde, prevalecendo o disposto no art. 196 da Constituição Federal. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo (Agravo de Instrumento nº 80.727-5/0-00, j. 6.8.2002, Rel. Des. PEIRETTI DE GODOY; Agravo de Instrumento nº 322.302-5-5, j. 03.06.2003, Rel. Des. CAUDURO PADIN e Apelação Cível nº 319.023-5/4-00, j. 11/08/2003, Rel. Des. JOSÉ HABICE).

Portanto, não há como fugir à conclusão de que existe obrigatoriedade à União, aos Estados e aos Municípios em cumprir com as diretrizes constitucionais sobre o tema. No tocante ao fornecimento pelos Planos de Saúde, em que pese ressalva contida no enunciado do Tema 990 do Superior Tribunal de Justiça de que “as operadoras de plano de saúde não estão
obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA”, entendemos que tal entendimento deve ser visto com temperamentos.

De fato, não se pode negar o direito do contrato de estabelecer que tipo de doença está ao alcance do plano oferecido. Todavia, deve haver distinção entre a patologia alcançada e a terapia. Não nos parece razoável que se exclua determinada opção terapêutica se a doença está agasalhada no contrato.

Isso quer dizer que, se o plano está destinado a cobrir despesas relativas ao tratamento, o que o contrato pode dispor é sobre as patologias cobertas, não sobre o tipo de tratamento para cada patologia alcançada pelo contrato. Na verdade, se não fosse assim, estar-se-ia autorizando que a empresa se substituísse aos médicos na escolha da terapia adequada de acordo com o plano de cobertura do paciente.

E isso, na nossa avaliação, é incongruente com o sistema de assistência à saúde, porquanto quem é senhor do tratamento é o especialista, ou seja, o médico que não pode ser impedido de escolher à alternativa que melhor
convém ao tratamento e cura do paciente. Depois, tratando-se de exclusão de cobertura, ela não poderá ser estatuída de modo residual, sob o raciocínio de que o que não está previsto estará automaticamente excluído. Se cobre a doença, cobre seu tratamento.

E mesmo que fosse admitida sua exclusão, esta deveria vir expressa - o que a nosso ver também seria abusivo. Ou seja, ao convênio cabe estabelecer, observada exigência de padrão mínimo, quais as doenças cobertas. Não o tratamento indicado.

A corroborar nosso entendimento, temos recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, proferido em 29/04/2019, que assim concluiu:

“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. MODALIDADE DE AUTOGESTÃO. 1. INAPLICABILIDADE DO CDC. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO AFASTA A FORMA VINCULANTE DO CONTRATO. BOA-FÉ OBJETIVA. DESCUMPRIMENTO. 2. RECUSA INDEVIDA DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PRESCRITO PELO MÉDICO ASSISTENTE. DANO MORAL CONFIGURADO. ALTERAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 3. MONTANTE INDENIZATÓRIO. PLEITO DE REDUÇÃO. NÃO DEMONSTRADO
O CARÁTER ABUSIVO NO VALOR FIXADO NAS INSTÂNCIAS
ORDINÁRIAS. SÚMULA 7/STJ. 4. AGRAVO IMPROVIDO. 1. O fato de não ser aplicável a legislação consumerista aos contratos de plano de saúde sob a referida modalidade não atinge o princípio da força obrigatória do contrato, sendo imperiosa a incidência das regras do Código Civil em matéria contratual, tão rígidas quanto às da legislação consumerista, notadamente acerca da boa-fé objetiva e dos desdobramentos dela decorrentes. Precedentes. 2. Compete ao profissional habilitado indicar a opção adequada para o tratamento da doença que acomete seu paciente, não incumbindo à seguradora discutir o procedimento, mas custear as
despesas de acordo com a melhor técnica. Além disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece a possibilidade de o plano de saúde estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de procedimento utilizado para o tratamento de cada uma delas
. Precedentes. 2.1. No que concerne à existência ou não de ato ilícito, o acolhimento do recurso demandaria a revisão da conclusão do acórdão recorrido mediante o reexame direto das provas, providência manifestamente proibida nesta instância, nos termos da Súmula 7 do STJ. 3. Da mesma forma, em relação
à fixação do valor indenizatório arbitrado a título de danos morais, não há como conhecer do recurso por incidência da Súmula 7/STJ. 4. Agravo interno a que se nega provimento.” (STJ, AgInt no REsp n. 1765668, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 29.04.2019). (grifamos)

Desta forma, entendemos que não pode o paciente, consumidor do plano de saúde, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno do momento em que instalada a doença coberta em razão de cláusula limitativa.

Por fim – e indo mais além – convém mencionar recentíssima decisão proferida no dia 23 de maio de 2019, a 10ª Câmara Criminal do TJ/SP que deferiu, em caráter liminar em Habeas Corpus, a expedição de salvo-conduto para permitir que o paciente possa cultivar, em sua residência, a planta Cannabis Sativa L, com prazo de 01 (um) ano, para fins exclusivos de extração do óleo medicinal, o Canabidiol (Habeas Corpus Criminal nº 0011944-38.2019.8.26.0000).

Ademais, no âmbito federal, está em tramitação no Supremo Tribunal Federal a ADI 5.708, ajuizada pelo Partido Popular Socialista (PPS), que pleiteia a descriminalização do cultivo e a compra para fins medicinais.

Em resumo: O Brasil está deixando de faturar milhões de reais porque ainda usa o Canabidiol (CBD) de forma onerosa e burocrática. Os números do mercado do CBD no mundo indicam um crescimento espantoso.

Desde 2015, os produtos derivados da maconha foram prescritos por mais 1000 médicos brasileiros. Hoje, mais de 5.000 pessoas já têm autorização para importar para uso próprio. Os dados são da própria Anvisa e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), uma rede de diversas organizações não-governamentais que discute a questão das drogas.

No caso de o canabidiol vir a ser normatizado no país, a estimativa é de uma receita anual de bilhões de reais para o Brasil. Como se pode perceber, é uma indústria que vem crescendo de forma exponencial, tornando difícil ainda mensurar o tamanho futuro deste negócio, ainda pouco explorado no Brasil, em face da ausência de regulamentação.

Enquanto isso não acontece, compete ao Poder Judiciário dizer o direito, sem que isso configure ingerência na atividade administrativa do Estado, pois em se tratando de direito fundamental à saúde, não pode a separação dos Poderes constituir-se em obstáculo à atuação do Poder Judiciário em sua missão de coibir lesões ou ameaças a direitos daqueles que o provocam.

FONTES:
• Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://www.who.int/
• Conselho Federal de Medicina. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/
• https://www.saude.gov.br/
• Revista Brasileira de Medicina do Esporte. Disponível em: https://rbme.org/
• Blog da Organização Pan-Americana de Saúde. Disponível em: https://www.opas.org.br/
• Bulário Eletrônico da ANVISA. Disponível em: https://portal.anvisa.gov.br/bulario-eletronico1
• Food and Drug Administration USA. Disponível em: https://www.fda.gov/
• Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA. Disponível em: https://www.nlm.nih.gov/
• Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Disponível em: https://www.saude.sp.gov.br
• Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Disponível em: https://portal.anvisa.gov.br/
• Universidade Federal de São Paulo. Disponível em: https://www.unifesp.br/
• Sociedade Brasileira de Pediatria. Disponível em: https://www.sbp.com.br/
• Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Disponível em: https://www.endocrino.org.br/
• https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4019373/pdf/nihms-574508.pdf
• https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29233672
• https://bestpractice.bmj.com/info/pt/
• https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/
• https://canadiantaskforce.ca/
• https://portalms.saude.gov.br/
• https://www.drugs.com
• https://www.mayoclinic.com
• https://www.medscape.com/
• https://www.sbd.com.br
• https://pbpd.org.br/
• https://portal.anvisa.gov.br/importacao-de-canabidiol

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