Brasil já tem um mercado legal de cânhamo

E, se fumar, não vai dar onda

Publicada em 01/02/2023

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Por Rafael Arcuri

“E se eu fumar essa camiseta, eu vou ficar doidão?” Essa é, invariavelmente, a primeira pergunta que as pessoas fazem quando ficam sabendo que o tecido de alguma roupa é de cânhamo. Não há escapatória e é natural que ainda seja assim. O mercado de cânhamo, no Brasil, ainda está engatinhando. Por isso, vamos tentar explicar o que já existe, o que pode ser feito e o por que não temos mais produtos assim. (E, não, você não vai ter onda se fumar uma roupa de cânhamo).

O cânhamo nada mais é do que a cannabis não-psicotrópica (que não dá onda). É um conceito que muda de país para país e o Brasil ainda não bateu o martelo sobre o que ele significa, juridicamente, aqui. Os EUA regulam o cânhamo como a cannabis sativa L. que tenha até 0.3% do peso seco da planta de THC, no Paraguai é 0.5% e por aí vai. O cânhamo é legal na maior parte do mundo e normalmente tem uma regulação muito mais simples do que a cannabis com elevado teor de THC.

No Brasil, temos uma proibição geral sobre a cannabis, feita pela Portaria nº 344/1998, da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária). Os usos medicinais, hoje comuns em solo nacional, foram permitidos por meio de exceções criadas nesta portaria. Mas temos uma zona cinzenta sobre o cânhamo (que é cannabis sativa L. e está na proibido, de forma genérica, na Portaria).

Quando os usos do cânhamo não contém canabinóides e não estão sob a competência regulatória da Anvisa, não há vedação legal para ele. Por isso, no Brasil, nunca deixamos de encontrar roupas de cânhamo. E, hoje, várias marcas já usam o tecido. Temos a Osklen, Levi’s, Reserva e várias outras. 

Mas duas iniciativas nacionais chamam muito a atenção. ODispensário, aberto recentemente em Brasília, e a FloYou, que vende calcinhas menstruais de cânhamo.

A ideia de um dispensário, no país, chama a atenção porque não se pode vender cannabis recreativa aqui - e isso é o modelo dos dispensários em países com o uso recreativo regulado. O objetivo foi juntar, em um mesmo lugar físico, tudo o que dá pra fazer com a cannabis atualmente. 

São produtos de cânhamo, como sedas para tabaco e roupas, acessórios para fumo no geral e atendimento a pessoas que querem se informar sobre os usos medicinais. Além disso, é possível comprar produtos com terpenos iguais aos que se encontram na cannabis. Os terpenos são substâncias naturais encontradas em plantas e que dão características sensoriais específicas, como odores e sabores específicos.

O que chama a atenção do projeto é ele ter usado um nome muito polêmico para o atual cenário regulatório. A primeira reação daqueles que já têm algum contato com o mercado é se perguntar: “mas como eles abriram um dispensário aqui?” E essa reação é proposital. Convida a um debate racional e maduro sobre o tema, ficando sempre do lado empreendedor possível atualmente.

A FloYou é outro projeto nacional que conseguiu aproveitar o cenário regulatório atual e inovar. A calcinha menstrual de cânhamo junta dois temas cercados por estigma e tabu: cannabis e saúde feminina. A calcinha ocupa um lugar muito interessante no mercado atual, já que o cânhamo foi escolhido pelas características da fibra e do cultivo. A fibra é mais resistente, durável e o cultivo mais sustentável. Além de tudo, a fibra de cânhamo é bactericida, característica importante para esse tipo de produto.

A escolha dessas duas marcas em trabalhar com cannabis, no Brasil, apresenta dificuldades. A matéria-prima vem de fora e as normas, ainda que não proíbam, são menos maduras do que em mercados tradicionais. Todos esses são fatores que geram custos financeiros e organizacionais extras. Mas, na mesma proporção, esse meio apresenta os benefícios de um segmento ainda pouco explorado, cheio de espaço para inovação - seja dos produtos em si, seja dos modelos de negócios.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Rafael Arcuri* é advogado, Diretor Executivo da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC), especialista em direito regulatório, mestre e doutorando em direito e políticas públicas e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da OAB-DF.