Ainda minoria na indústria canábica, mulheres resistem e reivindicam maior papel de liderança

Número de mulheres ocupando cargos executivos no setor em 2021 caiu para abaixo da média de mulheres executivas em outros setores nos EUA.

Publicada em 30/11/2021

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Curadoria Sechat, com informações de Poder 360 (Anita Krepp)

Poucas vezes na história, as mulheres tiveram a chance de participar do nascimento de uma indústria, formando suas bases, como agora têm a oportunidade de fazer na de cannabis. Coincidiu de a planta que guarda em sua versão feminina o maior potencial terapêutico de seus frutos e flores ser “redescoberta” no século 21, quando também as mulheres passaram a reivindicar seu protagonismo no mundo dos negócios.

No Brasil e no resto do globo, a luta canábica é encabeçada por mulheres, em geral mães de crianças com condições clínicas que respondem satisfatoriamente aos tratamentos com a erva. Margarete dos Santos Brito, Katiele Fisher e Cidinha Carvalho foram as precursoras desse debate por aqui e seguem sendo os pilares das associações que resistem à falta de regulamentação do setor para garantir acesso à medicamentos à base de cannabis para as suas filhas e outros milhares de pacientes.

Se o instinto de cuidado e proteção é inerente à natureza feminina ou se ele se desenvolveu durante os séculos em que as mulheres eram privadas de vida social, absortas nos cuidados da casa e da família, já não importa para as mulheres que veem na cannabis a oportunidade perfeita de conectar cuidado e natureza com o capitalismo do mundo real. Muitas das soluções que a cannabis propicia estão ligadas a questões do trato reprodutivo feminino, como endometriose, cólicas e ressecamento vaginal. O útero, aliás, é o segundo órgão com o maior número de receptores canabinóides no corpo humano, atrás apenas do cérebro.

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QUAL SERÁ O PAPEL DA MULHER?

Não restam dúvidas de que a cannabis se transformará em uma indústria multibilionária, que revolucionará setores desde comestíveis embalados a produtos farmacêuticos, passando por agricultura e bem-estar. A incerteza reside, no entanto, quanto ao papel da mulher no longo prazo nessa indústria. Como consumidoras, nosso espaço está garantido. De acordo com dados analisados pela consultoria de dados em cannabis Headset, a venda anual de cannabis para mulheres da Geração Z --nascidas a partir de 1997--, cresceu 151% em 2020, enquanto que para os homens da mesma geração o crescimento foi de 118%.

Mas e quanto à nossa participação no mercado de trabalho em cannabis? Apesar de não haver dados sobre o número de mulheres que ocupam cargos de diretoria em empresas de cannabis no Brasil, um levantamento feito especialmente para este artigo pela Xah com Mariaz, edtech que fomenta o empreendedorismo feminino canábico no país, pode apontar um caminho. Cerca de 40% das vagas gerais das 74 instituições com ou sem fins lucrativos que trabalham direta ou indiretamente de forma regular com a cannabis são ocupadas por mulheres, ou seja, de 423 colaboradores, 176 são do sexo feminino.

Pode parecer animador, mas observando dados consolidados dos EUA, nota-se que ainda falta diversidade de gênero na indústria da maconha, especialmente em cargos de liderança que, curiosamente, foram inicialmente ocupados por executivas que enfrentavam barreiras intransponíveis nas indústrias tradicionais e buscavam expandir suas oportunidades de carreira. No entanto, esse número está diminuindo e já acende o alerta vermelho.

De acordo com um relatório publicado pela agência de notícias canábicas MJBizDaily, em 2019, 36,8% de todos os cargos executivos na indústria eram ocupados por mulheres. Em 2021, esse número caiu para 22,1%, enquanto a média norte-americana de mulheres líderes em outras indústrias é de 29,8%, o que revela que à medida em que a indústria amadurece, o poder de escolha e decisão acaba escapando das mãos das mulheres, o que revela que mesmo em meio a um avanço pode também haver retrocessos.

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MENOS VÍCIOS QUE EM OUTRAS INDÚSTRIAS

Indústrias jovens, como a da cannabis, já nascem com a obrigação de cumprir com direitos conquistados por mulheres e outras minorias, o que, pelo menos em teoria, supõe um descanso na luta pela correção de erros do passado. Seria mais ou menos como se a cada mulher lhe fosse dada uma folha em branco para escrever uma nova história. Assim, nasce o interesse especial das mulheres em fazer parte desse novo mercado, que também traz consigo novos desafios, ao cortar vícios profundamente arraigados em outros setores.

O poder de transformação da cannabis na vida das mulheres que tiveram ou acompanharam de perto uma experiência de uso medicinal ou religioso da planta impulsionaram várias delas a transformá-lo em propósito de vida, a ponto de querer largar tudo para trabalhar com cannabis. E é justamente na cannabis medicinal que a maioria das mulheres encontra espaço para florecer profissionalmente, mais especificamente na indústria farmacêutica, que é hoje a principal porta de entrada para profissionais do sexo feminino, ao empregar uma porcentagem equilibrada de homens e mulheres, inclusive em cargos c-level.

Viviane Sedola, CEO da Dr. Cannabis, plataforma que faz a ponte entre médicos e pacientes, aponta outra tendência na mesma direção: as agendas das médicas mulheres são sempre as mais concorridas da plataforma. Segundo ela, que, em 2019, foi eleita pela revista High Times como uma das 50 mulheres mais influentes no mundo da cannabis, as pessoas se sentem mais confortáveis em se consultar com médicas do que com médicos, por conta do cuidado especial que oferecem.

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UM LEÃO POR DIA

Os desafios das mulheres para empreender em cannabis são parecidos com aqueles encontrados em outros setores. Conquistar o respeito de uma maioria masculina e ocupar o lugar de fala em reuniões com apenas uma mulher presente é o mais comum deles. Mas, não é nada que uma boa dose de autoconfiança e obstinação não resolva. Para fortalecer ambas, é necessário priorizar uma formação sólida para construir autoridade em espaços dominados por homens, acredita Maria Eugênia Riscala, diretora da empresa de análise de dados Kaya Mind. Ela admite já ter sofrido muito preconceito e machismo ao longo dos anos, mas reconhece que isso vem diminuindo. “Já me sugeriram usar shorts ou saia em uma sessão de fotos, mas isso não acontece mais, pois começamos a ter um poder um pouco maior de participação e escolhas. Hoje, eu sofro muito menos machismo.”

A dificuldade para captar investimentos é outro desafio para as mulheres que buscam iniciar um negócio canábico e, talvez, seja o mais importante deles, já que, curiosamente, 93% do capital de risco disponível no mercado norte-americano é controlado por homens. Precisamos de diferentes pontos de vista, mesmo que conflitantes, sentados à mesa para gerar soluções sólidas e maduras para o setor canábico.Se não houver fundos que realmente tentem fugir dessa dinâmica por meio de uma atividade constante nesse sentido, as mulheres seguirão sendo subjugadas no mundo dos negócios, sejam eles canábicos ou não.

Segundo dados da Crunchbase, as rodadas de investimento para startups fundadas apenas por mulheres na América Latina passaram de 14 milhões de dólares em 2019 para zero em 2020. Em relação às startups com mulheres e homens como fundadores, os recursos arrecadados caíram de 748 milhões de dólares em 2019 para 612 milhões em 2020. Em contrapartida, os investimentos em startups fundadas apenas por homens cresceram de 3,80 bilhões para 3,83 bilhões de dólares. Não se sabe se as empreendedoras não tiveram êxito na captação ou se nem chegaram a se apresentar aos fundos, mas sabemos que a pandemia só fez agravar a situação de muitas mulheres que ficaram ainda mais sobrecarregadas.

Apesar de feitas uma para a outra, a indústria da cannabis e a força de trabalho feminina ainda não estão à salvo de que este seja mais um setor da economia dominado por homens. Matar um leão por dia tem sido rotina na vida de várias empreendedoras, como Bárbara Arranz, criadora da Linha Cosmética Canábica da Bá e da Hemp Vegan, que se preocupa em evitar roupas decotadas e esconder as tatuagens em reuniões de negócios. “Por mais que eu seja a diretora da marca, ainda tenho que aguentar homens que sempre se dirigem primeiro ao meu marido em qualquer reunião em que ele esteja presente”, desabafa.

CONTRATAR COM INTENÇÃO

Os preconceitos que excluem as pessoas, em muitos casos, não são conscientes e cabe às empresas abordarem o preconceito sistêmico onde quer que ele exista, especialmente durante os processos de contratação e nas formas como as empresas de maconha apoiam e permitem o desenvolvimento profissional de suas colaboradoras. É o que se pode chamar de contratar com intenção.

Caroline Heinz, que foi CEO da HempMeds no Brasil e durante quatro anos ocupou cargos diretivos na indústria farmacêutica, entende perfeitamente essa lógica. Única mulher em reuniões com mais de 10 homens, precisou trabalhar o dobro para provar seu valor. E trabalhar o dobro, para ela, significou perder momentos importantes no desenvolvimento da filha recém-nascida e sacrificar o casamento, que não resistiu à sua intensa dedicação ao posto. “Tinha paciente que me ligava desesperado pedindo ajuda e eu no meio de um jantar. Sempre atendi, não tinha como eu ignorar essa demanda”, lembra.

Quando percebeu que estava sobrecarregada pelo receio de perder oportunidades e acabava dizendo “sim” a tudo, resolveu sair da empresa para repensar sua trajetória profissional. Para o time da Sphera Joy, empresa de produtos à base de cannabis que montou há alguns meses, Caroline Heinz faz questão de contratar mães de pacientes, coisa que já fazia no comando da farmacêutica, pois sabe da importância de incluir mulheres que conhecem e acreditam no potencial de cura dessa planta. Normalmente, mães de pacientes são pessoas supercapacitadas que muitas vezes tiveram de deixar seus empregos para poder cuidar dos filhos com condições clínicas especiais. Algumas, inclusive, são abandonadas por seus maridos, e passam a viver em vulnerabilidade financeira.

Hoje, mais do que nunca, é preciso arregaçar as mangas para dar suporte e incentivo às mulheres que queiram trabalhar com cannabis e, assim, gerar um ecossistema interessante, com variados pontos de vista que devem levar à discussões mais amplas e pertinentes à toda a sociedade. Já que encontrar mão de obra especializada na erva é difícil e gera um alto custo para o desenvolvimento das empresas, que tal unir as duas pontas deste laço, ofertando postos de trabalho para redes de mulheres que já atuam no meio como ativistas, pesquisadoras ou pacientes?

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