Acesso à cannabis, boa-fé e trabalho

"É importante lembrar que o debate em torno dos direitos à saúde deve ter como primeiro paradigma a Constituição Federal de 1988, que traz o marco decisivo e importante no reconhecimento à esse princípio fundamental"

Publicada em 16/08/2022

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Por Maria José Delgado Fagundes

A organização da cannabis medicinal no Brasil se assemelha a uma colcha de retalhos a ser feita. Porém, cada retalho tem um dono, nem sempre disposto a colaborar com a costura da colcha. O papel organizativo da sociedade é cobrar acesso e o lugar das demais instâncias, é responder com lealdade e compromisso com a vida e a dignidade humana. A Constituição é viva e soberana. Vamos aplicar a Carta Magna? A começar pelo direito à saúde, capítulo que anda bem esquecido neste momento. 

Se o direito à saúde é um direito fundamental e dever do Estado bem como prover a população com o objetivo de atenuar risco de doenças e garantir o acesso universal e equitativo aos tratamentos parece-me democrático que o cidadão, após peregrinar em busca de um médico habilitado para a prescrição da cannabis de uso medicinal, encontre portas de acolhimento, receba orientação, diagnóstico e conduta favorável para promover melhorias na sua condição de saúde.  E esse é um direito que não pode esperar, sob pena do paciente perder a vida, aos poucos, com sofrimentos para ele e seu núcleo familiar.

É importante lembrar que o debate em torno dos direitos à saúde deve ter como primeiro paradigma a Constituição Federal de 1988, que traz o marco decisivo e importante no reconhecimento do direito à saúde. Ela difere das Constituições anteriores, uma vez que tratou o tema separadamente, em capítulo próprio, dando a uma relevância e compromisso até então inéditos por parte do Estado brasileiro.

A Constituição Federal (artigo 1º, inciso III) definiu o fio condutor do Estado Democrático de Direito para a sociedade brasileira, a preservação da dignidade humana. Toda a arquitetura do texto Constitucional é perpassada por esse fundamento, e tem, como finalidade, assegurar ao indivíduo um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano.

A novidade constitucional não teve ainda plenos resultados práticos isso porque  quando a pessoa está enferma e necessita de um tratamento específico, depara também com dificuldades para além do que já seria o mais doloroso, o agravo à sua saúde, a lei não está sendo cumprida. O povo brasileiro tem dificuldade de acesso à saúde e vem se tornando cada vez mais comum a busca da ação judicial, mas esse é um assunto para outro dia. E assim, a inércia corresponde à concordância.

No que se refere ao paciente que necessita de terapia com derivados de cannabis, o acesso à assistência médica e farmacêutica passa por problemas originados também na formação acadêmica dos profissionais da saúde. Nas grades curriculares das faculdades de medicina, o Sistema Endocanabinoide e sua Farmacologia ainda não integraram as disciplinas regulares.  

Segundo dados da ANVISA, 2.100 médicos, de um universo de 487.275, prescreveram produtos à base de cannabis entre 2015 e 2020. Até a presente data, não há dados em relação aos farmacêuticos capacitados para a devida assistência aos pacientes que necessitam desse cuidado complementar. É importante ressaltar, que os odontólogos e médicos veterinários, apesar de habilitados a prescrever a cannabis de uso medicinal para a finalidade da sua prática profissional, estão impedidos conforme disposto da RDC 327/19. Sabemos que no processo de revisão da citada RDC, esse deve ser um pleito das categorias.  

A  educação para a terapêutica com canabinoides é um fator de grande relevância na discussão do acesso. Pelo mundo se observa um boom de ofertas de cursos de especialização, assim como no Brasil são ofertados por universidades privadas e pelo segmento regulado, mas temos notícias que os profissionais do SUS não recebem ações de educação para a terapêutica. Aos que se movimentam na esteira do pioneirismo, necessário se faz saudar a iniciativa da Unifesp com os emblemáticos cursos abertos, conhecidos também por “Curso do Padre Ticão”. 

Destacar o pioneirismo da Universidade Federal da Paraíba, que disponibilizou – a partir do esforço e dedicação da professora doutora Katy Lísias Gondim Dias de Albuquerque (Departamento de Fisiologia e Patologia) –, a disciplina que trata desse tema para três cursos: Biomedicina, Medicina e Farmácia. Ampliar os estudos farmacológicos sobre os canabinoides (endógenos e exógenos), com ênfase nas manifestações clínicas, tratamento e possíveis interações medicamentosas e introduzir conhecimentos sobre o Sistema Endocanabinoide e sua relação com diversas doenças são as bases da disciplina.

Também saudar a iniciativa da Universidade Federal de Santa Catarina, a qual introduziu no curso de Medicina Veterinária uma disciplina de Endocanabinologia, ministrada pelo professor Erik Amazonas.

É relevante para a sociedade que essa formação sobre as perspectivas terapêuticas da cannabis sativa aconteça dentro da graduação. Isso permitirá que os profissionais de saúde saiam das universidades com embasamento na ciência para aumentar seu aporte terapêutico e, portanto, tratar o tema com naturalidade e sem preconceito.

Os Conselhos de Classe

Neste contexto organizativo, boa-fé, inteligência e vontade de contribuir com a saúde pública são elementos-chave e os conselhos de classe têm papel importantíssimo para o fomento do conhecimento técnico-científico, uma vez que os conteúdos programáticos das formações acadêmicas não estão contemplados com o tema da cannabis. Neste sentido, há muita expectativa sobre os posicionamentos do Conselho Federal de Medicina (CFM) no segundo semestre de 2022.

No que se refere à cannabis medicinal, o CFM regulamentou as atividades médicas desde 2014 dando início à abertura ao uso medicinal para se tornar uma realidade no Brasil. Entretanto, com o passar dos anos, o que parecia pioneirismo passou a ser visto pela maioria como atos para limitar a indicação e as especialidades médicas autorizadas a prescrever. Os atos deliberativos do CFM que tratam da regulamentação são bastante restritivos, inclusive, vedam a prescrição terapêutica da cannabis in natura, bem como de quaisquer outros derivados que não o canabidiol. Restringe ainda  a utilização do tratamento para crianças e adolescentes com epilepsias e refratárias aos tratamentos convencionais, com a prescrição do tratamento  voltada às especialidades de Neurologia e suas áreas de atuação, como Neurocirurgia e Psiquiatria.

Dando continuidade ao tema e alinhado aos avanços propiciados pela ANVISA, para a garantia do acesso, o Conselho Federal de Medicina publicou uma consulta dirigida aos médicos, cujo prazo de contribuição é até 30/07/2022 para atualizar a Resolução 2.113/14. A expectativa é que dessa consulta seja corrigido o critério de limitação da prescrição pelos médicos e que garanta o pleno direito à saúde dos pacientes. Tais processos não são ágeis, mas é esperado que neste segundo semestre sejam publicadas as novas compreensões do CFM. 

Atualmente o Conselho Federal de Farmácia tem instituído um Grupo de Trabalho sobre Cannabis Medicinal e vem, de maneira sistemática, realizando eventos para aprimorar o conhecimento dos profissionais farmacêuticos no tema. 

A cannabis é alternativa terapêutica e o Estado brasileiro precisa rever a formação dos profissionais da saúde com o apoio dos Conselhos Profissionais, se dedicando à formulação da política pública para acesso à cannabis medicinal com o objetivo de garantir o acesso legítimo, célere e eficiente aos pacientes que dela necessitam.

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

Maria José Delgado Fagundesé CEO na MJDFagundesconsultoria, advogada, profissional  na área de compliance, consultora especializada em saúde, sistemas regulatórios, setor  farmacêutico e associações de suporte a pacientes.