A polêmica sobre o fornecimento de tratamento à base de cannabis pelos Planos de Saúde

Após a suspensão do julgamento do STJ sobre o rol da ANS e a lei sancionada por Bolsonaro na última semana, surgiram muitas dúvidas sobre as responsabilidades dos planos de saúde. Para ajudar a entendermos melhor este assunto, Daiane Zappe explica es

Publicada em 07/03/2022

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Por Daiane Zappe

Na última semana, o Presidente Jair Messias Bolsonaro sancionou a lei n.º 14.307/2022, que dispõe sobre o processo de atualização das coberturas no âmbito da Saúde Suplementar. Tal lei é fruto de conversão de uma Medida Provisória de autoria da Presidência da República.

Coincidência ou não, a lei foi sancionada uma semana após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter suspendido novamente o julgamento sobre a extensão do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS), a lista de procedimentos médicos que devem ser cobertos pelos planos de saúde no Brasil. Ou seja, os ministros do STJ julgam se o rol da ANS é taxativo ou exemplificativo. 

E o que significa Rol Taxativo e Rol Exemplificativo? 

O rol taxativo é aquele que os planos de saúde serão obrigados a cobrir apenas os itens descritos na guia de procedimentos, enquanto no rol exemplificativo, os planos devem cobrir as coberturas mínimas obrigatórias, mas não excluir outros procedimentos ou tratamentos, ainda que não previstos expressamente no rol da ANS. Parece ser bastante lógico, se a doença é coberta contratualmente, o tratamento indicado pelo médico do paciente também deve ser, afinal, quem define o tratamento é o médico com o paciente, e não a ANS.

O posicionamento do rol exemplificativo respeita a autonomia do médico e este princípio vem descrito no próprio Código de Ética Médica ao estabelecer que "(...) o médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho”. 

A 3ª Turma do STJ entende que o rol é exemplificativo, sendo abusiva a negativa de tratamento não previsto pela ANS para doença prevista no contrato do plano de saúde e as decisões nos tribunais, majoritariamente, entendem que este rol seria exemplificativo. Mas, recentemente, a 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.733.013/PR, sinalizou uma possível mudança de entendimento, como sendo taxativo, e desde então, tem afastado súmulas de Tribunais de Justiça estaduais — como no caso de São Paulo e do Rio de Janeiro — que estabeleciam de antemão que, havendo indicação médica, a negativa de cobertura pelo plano de saúde é abusiva.

Esta é a divergência que está sendo julgada atualmente pelo colegiado composto pelos dez ministros da 3ª e 4ª Turmas no Recurso Especial 1.867.027.

E o que isso tudo interfere no fornecimento de tratamento à base de cannabis pelos planos de saúde?

O que tem acontecido, na prática, é que os pacientes da cannabis medicinal, que realizaram pedidos administrativos junto aos planos de saúde solicitando o fornecimento do tratamento, tiveram os pedidos negados, sendo que os planos usam como justificativa para esta negativa exatamente o fato de que este tratamento não está no rol de procedimentos obrigatórios da ANS (o rol taxativo, lembra?). Estes pacientes, então, ingressaram com ação no Poder Judiciário contra os planos de saúde, solicitando esta cobertura. E as decisões, em sua maioria, têm sido favoráveis aos pacientes – obrigando, portanto, os planos de saúde a custear o tratamento, tanto com produtos importados como nacionais.

Este tem sido o entendimento majoritário também no tratamento de milhares de crianças com autismo no Brasil, inclusive obrigando às operadoras dos planos de saúde a custear outros tratamentos tais como: a terapia ABA, (Applied Behavior Analysis, ou Análise do Comportamento Aplicada, em português), psicoterapia, psicomotricista, fonoterapia, arteterapia, pet terapia, hidroterapia, ecoterapia e outras, que se fazem necessárias conforme prescrição médica. Entendeu por que as mães de crianças autistas estavam realizando manifestação em frente ao STJ no dia do julgamento? (aqui vemos o amor de mãe movendo o mundo, como na nossa luta pela cannabis, estas mães são transformadoras da história)

Para se ter uma ideia, quando eu digo majoritariamente, em números, significa que dos 27 Tribunais Estaduais e do Distrito Federal, apenas 3 entendem que o rol é taxativo, para os 24 demais o rol é exemplificativo.

Nas ações favoráveis ao custeio do tratamento, entende-se que os planos e seguros de saúde estão submetidos ao Código de Defesa do Consumidor e se caracterizam como sendo de adesão. Ou seja, são contratos já prontos, que não permitem sua discussão no momento da assinatura. Dessa forma, a sua interpretação deve ser a mais benéfica ao usuário, conforme melhor interpretação do artigo 424 do Código Civil, o qual estabelece que: "Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio".

Ou seja, o consumidor não pode renunciar antecipadamente a tratamentos e procedimentos médicos que venham a ser desenvolvidos posteriormente à contratação (e por qualquer motivo não sejam incluídos no rol de procedimentos), justamente porque decorrem evidentemente da natureza do negócio. O contrato de plano de saúde visa, em última análise, preservar a vida e saúde do usuário em caso de necessidade, respeitando a vedação à renúncia antecipada de direitos.

A lei que foi sancionada na semana passada, na verdade, não fala em rol taxativo, mas sim que cabe à ANS a competência de definir a cobertura dos planos de saúde. Isto não é novidade, então não precisamos nos desesperar (mas sim seguir alerta no julgamento do STJ).

A lei anterior à 10.307/22, a Lei 9656/98, também atribuía à ANS esta responsabilidade de elaborar a lista de procedimentos. O que não é novidade. O rol taxativo existe para a ANS desde abril de 2021, com a resolução 465, no seu artigo segundo que prevê “Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde”.

Na verdade, espera-se que a ANS atue de acordo com as boas práticas médicas, acompanhe os avanços da medicina e respeite a autonomia médica.  No entanto, o que realmente acontece é a divergência entre a realidade da prática médica e os aspectos formais e burocráticos da agência reguladora, que resulta em conflitos entre pacientes, os quais lutam pela vida e por tratamentos mais adequados. As operadoras de planos de saúde irão alegar serem obrigadas a cobrir os procedimentos e tratamentos previstos expressamente no rol, com claro objetivo de manter seus lucros, chamados então de “equilíbrio financeiro do contrato”.  Aqueles que defendem a taxatividade do rol da ANS, alegam maior previsibilidade para os cálculos atuariais e segurança, para não ocorrer falência do sistema de saúde suplementar;

Será que podemos realmente falir as operadoras de saúde? Como já explicitado, a grande maioria dos tribunais tem aplicado o entendimento do rol exemplificativo, e, segundo informações obtidas junto ao site da ANS, (dados publicados para qualquer um confirmar, basta clicar aqui https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais) o faturamento das operadoras de planos de saúde vem aumentando ano a ano, só crescem. Ou seja, não existe possibilidade desta suposta falência e que o rol exemplificativo seria um grande risco à saúde suplementar. Fato!

O que temos aqui, de uma forma bem simplificada, é: de um lado, a vida e de outro, o lucro!  

O que vale mais?

De que lado você está? E fica aqui uma provocação - temos que ter um lado, precisamos nos posicionar, urge sair em defesa de milhares de pacientes que necessitam recorrer ao judiciário para ter respeitado o seu direito à saúde, à vida, acima de tudo vida digna. Parabéns às mães corajosas que estiveram lá em Brasília lutando pela vida de seus filhos - #roltaxativomata.

Assim como a Resolução da ANS 465, temos outro ato normativo que vejo como essencial trazer para o debate. O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução do CFM nº 1401/93, a qual determina em seu artigo 1º, que "as empresas de seguro-saúde, empresas de Medicina de Grupo, cooperativas de trabalho médico ou outras que atuem sob a forma de prestação direta ou intermediação dos serviços médico-hospitalares, estão obrigadas a garantir o atendimento a todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de saúde, não podendo impor restrições quantitativas ou de qualquer natureza". 

O Rol taxativo não é uma restrição? Há alguma dúvida?

Voltamos à espera do posicionamento do julgamento, por hora suspenso. Apesar de parecer que o sentimento de “justiça” esteja muito mais próximo do rol exemplificativo, e realmente rogo que esta seja a decisão final, pois atualmente temos apenas 2 votos, um favorável e outro contrário, portanto, a decisão está empatada.

Por enquanto, ainda precisamos também recorrer ao judiciário para solicitar tratamentos que não estão no rol da ANS. Aqui entra o tratamento à base de cannabis. Não conheço nenhuma operadora de plano de saúde que tenha deferido este pedido administrativamente, sem que haja um processo judicial - caso alguém tenha esta informação, ficaria feliz em receber a notícia - e acredito que o Poder Judiciário também, pois ajudaria a desafogar este volume absurdo de litígios.

Para ajuizar a ação, sempre será necessária a prescrição médica ou odontológica, um laudo muito bem elaborado pelo profissional médico solicitante, se for produto importado, também anexar o ofício de autorização de importação da Anvisa e, ainda é recomendado que também se anexe ao processo artigos científicos que comprovem o êxito com o tratamento, pesquisas e todo material necessário para o convencimento do judiciário. Se poucas pessoas da área médica conhecem os benefícios da cannabis, imaginem no judiciário. Sabemos que a discussão é atual (apesar de ser a planta medicinal mais antiga registrada na história, irônico, não?). 

Ainda, em termos práticos, com esta documentação em mãos, qualquer um pode ingressar no judiciário para ajuizar a ação, requerendo, portanto, que seu tratamento seja fornecido pelo plano de saúde. Afinal, a saúde é um direito fundamental, bem como a vida e a dignidade humana. Caso não tenha condições financeiras de arcar com as custas de um advogado, pode procurar a defensoria pública de sua cidade - e aqui um viva especial à defensoria pública, que precisa cada vez mais ser fortalecida.

Neste inevitável conflito de rol taxativo ou exemplificativo, nós, enquanto cidadãos, somos obrigados a recorrer ao judiciário, com milhares e milhares de ações judiciais, clamando pelo direito de ter seu tratamento fornecido pelas operadoras dos planos. Eis aqui a judicialização da saúde, eis o grande conflito: Vida ou Lucro? De que lado você está?

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat.

Sobre a autora:

Daiane Zappe é advogada, professora universitária especialista em Direito Constitucional na UFN e Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal). Entrou no universo da cannabis inicialmente como mãe de um paciente. Seu filho foi uma das primeiras crianças a obter autorização da Anvisa para importação ainda em 2014. Desde então, ela passou a auxiliar diversas mães de pacientes no processo de importação. Atua na indústria canábica desde 2015 e é completamente apaixonada pelo que faz.