A importância de Raphael Mechoulam para ciência mundial

Entenda como o químico, que faleceu sexta-feira (10/3), se tornou uma referência mundial em trabalhos e pesquisas com os compostos da cannabis, popularmente conhecida como maconha

Publicada em 10/03/2023

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Nascido na Bulgária em 1930, Raphael Mechoulam estudou engenharia química em sua juventude. Durante a segunda guerra mundial, emigrou com sua família para Israel, onde recebeu seu título de mestre em bioquímica pela Universidade Hebraica de Jerusalém.

Realizou seu pós-doutorado no Weizmann Institute, completando estudos no Rockefeller Institute, em Nova York. Em 1960 ele se juntou à equipe júnior do Instituto Weizmann e em 1985 tornou-se professor na Universidade Hebraica.

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Entre as suas diversas pesquisas, o químico se destacou em seus experimentos com canabinoides na década de 1960. Mesmo havendo um volume considerável de pesquisas sobre a química da planta cannabis, incluindo a elucidação da estrutura do canabinol (CBD), foi Mechoulam e alguns de seus colaboradores da Universidade Hebraica que, em uma série de artigos a partir de 1963, relataram pela primeira vez o isolamento, elucidação da estrutura, estereoquímica e atividade do Δ 9-tetraidrocanabinol (Δ 9-THC), um dos principais constituintes psicoativos da cannabis, originalmente chamado de Δ 1-THC. 

Eles também relataram o isolamento e elucidação estrutural e síntese química de numerosos canabinoides adicionais, como canabidiol (CBD), canabigerol (CBG), canabicromeno (CBC) e alguns ácidos carboxílicos canabinoides; conquistas que, por exemplo, facilitaram muito a determinação das ações farmacológicas da cannabis e seus fitocanabinóides.

É importante ressaltar que Mechoulam editou e também contribuiu com capítulos, para um livro intitulado “Maconha” que é uma excelente e muito útil fonte histórica de informações sobre o estado da arte da química, farmacologia, metabolismo e efeitos clínicos da cannabis/canabinoides, material este que abriu caminho para importantes e novas descobertas sobre a planta e seus compostos que foram feitas por Mechoulam e outros depois de 1973.

Contribuição para ciência 

Por quase duas décadas após a identificação do THC, acreditava-se que seus mecanismos de ação eram totalmente “não específicos”. No entanto, na década de 1980, as descobertas obtidas por vários grupos de pesquisa sugeriram que isso pode não ser verdade. Estes incluíram descobertas obtidas por Mechoulam e seus colaboradores mostrando que certos canabinoides exibem estereoseletividade, isto é, a forma preferencial de um estereoisômero sobre todos os possíveis.

Tais descobertas encorajaram a busca de um receptor canabinoide em tecidos de mamíferos, e essa pesquisa levou à descoberta de dois receptores canabinoides acoplados à proteína G. 

O primeiro (CB1) foi descoberto entre 1988 e 1990, e o segundo (CB2) foi descoberto em 1993. A evidência obtida no final da década de 1980 de que tecidos de mamíferos expressam o receptor CB1 imediatamente levou à busca de uma substância química produzida por esses tecidos que pudesse ativar esse receptor.

A corrida para descobrir tal “endocanabinoide” foi vencida por Mechoulam. Ele liderou uma pesquisa que forneceu evidências convincentes de que N -araquidonoil etanolamina, que ele e seus colaboradores chamaram de anandamida, é um composto produzido endogenamente que pode ativar o receptor CB1. E que o 2-araquidonoilglicerol também é um endocanabinoide ativador de receptores de canabinoides.

Muito sabiamente, dada a lipofilicidade (refere-se à habilidade de um composto químico ser dissolvido em gorduras, óleos vegetais, lipídios em geral) de fitocanabinoides como o THC, o químico decidiu procurar endocanabinoides entre compostos lipofílicos endógenos em vez de peptídeos endógenos, embora alguns peptídeos, chamados endorfinas, já tivessem sido encontrados. Outros endocanabinoides lipofílicos também foram descobertos posteriormente.

Raphael Mechoulam

Uma vida dedicada à ciência

“Passei a maior parte de minha vida decifrando os mistérios que podem ser encontrados nesta planta incrível. A pesquisa científica coletiva sobre a cannabis levou atualmente à identificação de um importante sistema fisiológico, o endocanabinoide, que parece estar envolvido em várias doenças humanas”, ressaltou Mechoulam em fala no livro “Tratado da Cannabis Medicinal”.

Ele destacou ainda que ficaria muito feliz em ver seus colegas avançarem nas investigações, sobretudo na aceitação e integração dos canabinoides, em particular o canabidiol e agonistas de CB2, na medicina tradicional. 

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Legado histórico

“Hoje o mundo acordou mais triste e o céu mais feliz, professor Raphael Mechulam partiu, mas deixou um legado de ciência e fé onde mostrou que não importa o tamanho do obscurantismo da ignorância, a chama de uma vela da ciência é suficiente para iluminar o caminho da verdade”. 

Dr, Pedro Pierro conheceu pessoalmente Raphael Mechoulam, considerado o pai da cannabis.

Assim comentou sobre a morte de Mechoulam o neurocirurgião e diretor científico do Sechat, Dr. Pedro Pierro, que explica que teve a oportunidade de conhecer e conversar com o professor em seu laboratório na Universidade Hebraica de Jerusalém.

“Durante nosso encontro era impossível não lembrar de Espinoza, filósofo judeu nascido na Holanda no início do iluminismo, que muito resumidamente pregava que Deus está em tudo e que a natureza era a mais completa representação de sua existência. Mechoulam ao longo de sua história e com contribuição de inúmeros cientistas, que decifraram um pouco da obra de Deus.” disse Pierro.

Dr. Pedro Pierro durante encontro com Dr. Raphael Mechoulam ao lado de outros importantes pesquisadores da cannabis medicinal, como Wilson Lessa, Eduardo Faveret e Maria Tereza.

Quem também se pronunciou foi Solange Nappo, viúva do médico, psicofarmacólogo, professor universitário, pesquisador brasileiro e amigo pessoal de Mechoulam, Elisaldo Carlini. Segundo a pesquisadora, Mechoulam foi cientista notável que elucidou as fórmulas estruturais do CBD e THC e mudou o curso das pesquisas com cannabis no mundo.

"Parceiro de Elisaldo Carlini em várias trabalhos científicos com Cannabis, constituíram uma dupla incansável de pesquisadores na busca das propriedades terapêuticas da Cannabis. O primeiro estudo clinico randomizado, duplo-cego, controlado para avaliação do efeito anticonvulsivante do canabidiol foi feito pela dupla. A ciência empobreceu um pouco mais com a perda de Dr. Mechoulam, mas deixo aqui as palavras que me foram ditas na morte de Carlini: 'não chores porque ele não está aqui, alegre-se porque esteve'", concluiu.

Solange Aparecida Nappo é professora universitária, Pesquisadora Científica do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), Presidente da ABRAMD - Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas e Co-fundadora do GEFCaP - Grupo de Estudos Farmacêuticos de Cannabis e Psicodélicos.

Solange Nappo e Elisaldo Carlini na sala de reunião do departamento de pharmacoquimica da universidade Hebraica de Jerusalém. Ao lado do laboratório onde foi realizado a pesquisa dos canabinoides.

O psiquiatra Dr. Wilson Lessa Jr, quando perguntado sobre sua relação com o professor Mechoulam, disse que ainda tem dificuldades para falar sobre a importância do legado do padrinho da cannabis medicinal. “Esse homem merecia um Nobel em vida. Mas que seja devidamente reconhecido agora”, afirma o médico. 

Premiações pelos estudos 

Em vida, Raphael Mechoulam foi um dos ganhadores do Prêmio Harvey - atribuído pelo Instituto de Tecnologia de Israel Technion, situado em Haifa e considerado um indicador confiável do famoso Prêmio Nobel. Desde 1986, mais de 30% dos agraciados com Harvey acabaram recebendo o Nobel.Por suas muitas realizações no campo da pesquisa da cannabis, Mechoulam foi agraciado também com reconhecimento e uma miríade de honras de prestígio, incluindo o Prêmio Israel em Ciências Exatas – Química (2000) e o Prêmio Kolthoff em Química do Technion. Membro da Academia de Ciências e Humanidades de Israel e, em 2014, foi nomeado um dos “50 Judeus Mais Influentes do Mundo” pelo Jerusalem Post.

O que fica agora é o reconhecimento e saudades de um dos maiores cientistas que já passaram pelo planeta terra no que desrespeito aos estudos sobre a cannabis e seus derivados. Para Maria José Delgado Fagundes, colunista do portal, advogada e ex-assessora da diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa):

“Raphael Mechoulam nos deixa um legado inestimável como exemplo de perseverança e ousadia na busca do conhecimento. Cientistas deviam ser eternos”, finaliza.

Em conclusão, ao longo de sua carreira de pesquisa no campo dos canabinóides, Raphael Mechoulam demonstrou repetidas vezes uma incrível capacidade de apresentar ideias originais e importantes que ajudaram muito a avançar o conhecimento sobre a farmacologia clínica e pré-clínica, a bioquímica e a química medicinal. 

Isso se deve principalmente à sua capacidade de estabelecer equipes de pesquisa altamente talentosas em seu laboratório, pensar tanto como químico quanto como biólogo - uma combinação poderosa - reconhecer como suas ideias/descobertas podem ser exploradas na clínica e estabelecer colaborações produtivas com médicos, com farmacologistas e com empresas farmacêuticas. Além disso, é digno de nota que seu sobrenome é frequentemente usado para nomear palestras de conferências (por exemplo, “Mechoulam Lecture”) e para nomear prêmios de prestígio, como o “Prêmio Mechoulam” da International Cannabinoid Research Society. 

Essa lacuna deixada pelo professor, jamais será esquecida para aqueles que conhecem o excelente trabalho prestado por ele, que deixa esse planeta em um dos melhores momentos da história da cannabis, onde seu uso medicinal e industrial vem sendo amplamente discutido e aceito por parte do legislativo e executivo em várias partes do globo.